Tuesday, March 30, 2021

Alguém disse que a tradução é…

 





Em A relação do tradutor e seus pares, publicação inaugural do blog, explorei alguns aspectos daquilo que compreendo ser uma relação profícua entre o tradutor e seus pares. Mencionei, ainda que brevemente, sermos trabalhadores, cujo ofício teria como matéria-prima a palavra. Além disso, disse também que exploraria este espaço no sentido de promover o meu trabalho. Mas não é só isso. Pretendo, também, explorar este espaço com o objetivo de exercer uma atividade que me proporciona muito prazer: escrever. E penso que fazer isso publicamente, entre outras coisas, poderia ser extremamente oportuno: por um lado, demonstrar aos meus clientes, ou mesmo ao estimado leitor interessado em acompanhar o blog, que escrever um texto de autoria própria pode ser um modo de apresentar as minhas capacidades de lidar com as palavras, por outro, que o tradutor também pode promover o pensamento. Escrever pode ser não só um meio de expressar as ideias, mas também uma maneira de tornar o pensamento inteligível por meio das palavras. E quando essa capacidade de expressão pode acontecer na língua materna isso se torna ainda mais gratificante. Quando penso que este texto poderá ainda ser vertido por mim para inglês e francês, fico tocado com o fato de que outras pessoas poderão ter contato com esta mensagem. “Escrever” – verbo sedutor. Hoje, tecerei algumas considerações sobre o valor da tradução.

Diferentemente do que muitos avaliam, tenho uma certa tendência a considerar que não há um valor a priori atribuído à tradução. Entretanto, isto não quer dizer que a tradução não tem valor algum, uma vez que a tradução é uma atividade… humana, feita por seres humanos! E, por ser uma atividade humana, estaria aí a sua importância. Em Parerga e paralipomena, Schopenhauer (1788 – 1860), bem ao seu estilo, elabora uma crítica em relação à tradução, ele afirma:

 

Toda tradução é uma obra morta, e seu estilo é forçado, rígido, sem naturalidade; ou então se trata de uma tradução livre, isto é, que se contenta com um à peu près, sendo portanto falsa. Uma biblioteca de traduções é como uma galeria de arte que só expõe cópias. E quanto às traduções dos escritores da Antiguidade, elas são um sucedâneo de suas obras assim como o café de chicória é um sucedâneo do verdadeiro café.[1] 

 

Aliás, uma crítica ou uma provocação, visto que o filósofo de Danzig cultivava e era um estudioso das letras? Diferentemente do que afirma Schopenhauer, não penso que a tradução é uma obra “morta”; muito pelo contrário! Ela vive a partir do momento em que pelo menos dois idiomas começam a estabelecer uma rica relação de convivialidade. E isso acontece, em grande medida, porque o tradutor, em virtude de suas habilidades linguísticas – sempre em aperfeiçoamento constante –, é capaz de verter uma obra do idioma de origem para o idioma de chegada, ou um texto, ou um poema, se assim preferir. Ou seja, além de considerável experiência com o idioma materno, com o qual o tradutor tem uma profunda relação existencial, em certo momento da vida, o profissional das letras estabeleceu um íntimo contato com um outro idioma, aprendendo a segunda língua – terceira, quarta, etc. –, e assim, em certo sentido, também estabeleceu contato com outro povo (o seu modo de vida ou – e por que não? – o seu modo de pensar).

Quanto ao estilo da obra, creio que essa avaliação tende a ser um pouco relativa. Há tradutores da área literária que fazem um trabalho de tradução extremamente bem feito, e a leitura do texto traduzido é extremamente agradável. O estilo é fluído e elegante. O trabalho desses profissionais é extremamente importante, pois nem todas as pessoas falam um segundo idioma. Quando uma obra literária cujo texto original foi escrito, por exemplo, em inglês ou francês, é traduzida para, por exemplo, português – ou vice-versa –, o trabalho do tradutor tem um papel notável: a atividade de tradução seria responsável por promover o encontro entre autor e leitor. Dito de outro modo, procuro entender o ofício do tradutor como uma capacidade de viabilizar o contato entre, pelo menos, duas pessoas, ou se preferir, uma capacidade de edificar pontes. Por outro lado, penso que a crítica de Schopenhauer possa fazer sentido quando um texto traduzido não tenha um resultado final satisfatório, isto é, quando a inteligibilidade do texto traduzido está comprometida, e isso acontece pelos mais variados motivos. Ainda assim, penso que o estilo de um texto traduzido pode ser extremamente elegante quando bem traduzido.

Neste sentido, quando é requisitado a traduzir uma obra, o tradutor está ciente de que o seu trabalho deve ser bem feito, e que o texto a ser traduzido deve ser bem traduzido. Palavras óbvias, por vezes, precisam ser relembradas. É claro que há dificuldades durante o percurso e nem sempre é possível encontrar a solução ideal para a tradução de um termo ou uma expressão, uma vez que, dependendo do texto, certas coisas são praticamente impossíveis de ser traduzidas. Há certas perdas durante a atividade de tradução, e isso é inevitável, afinal, o texto foi concebido em outro idioma. Há elementos linguísticos e a própria maneira de pensar está em jogo. Isso salta ainda mais aos olhos quando a obra a ser traduzida é um poema. No entanto, penso que a atividade de tradução pode ser extremamente rica para o tradutor, e se o seu trabalho for capaz de expressar essa riqueza tanto melhor para o leitor. Assim, não concordo com Schopenhauer quando ele afirma que em uma biblioteca de obras traduzidas haveria apenas cópias. Penso que, do ponto de vista comparativo, há o texto original e o texto traduzido. Desta forma, ambos são completamente diferentes – obviamente. Contudo, quando a atividade de tradução torna o texto inteligível para a língua de chegada, temos um texto traduzido que teria, entre outras coisas, a ideia de expressar a inteligibilidade do texto original.

Assim, sobretudo quando se trata de um texto de uma obra literária, a atividade de tradução ganha contornos criativos. Como avaliar um texto traduzido? Qual o seu valor para um leitor que, pelos mais variados motivos, não conhece ou fala o idioma do autor? Há muitos textos clássicos escritos em grego ou latim que foram traduzidos para as línguas modernas e graças ao trabalho de tradução tornamo-nos capazes de estabelecer contato com o universo daqueles autores, ainda que de maneira limitada. Entretanto, as obras originais são únicas e aí está um de seus valores. Aliás, deixo uma pergunta: você seria capaz de descobrir os tesouros legados para nós pelos autores clássicos se aprendesse um idioma antigo, como o latim ou grego?

Portanto, um texto traduzido é o resultado final de todo um itinerário existencial vivido pelo profissional da tradução. E é nessa medida que reside o valor dessa atividade. Ou seja, eu dizia há pouco que tenho a tendência a considerar que não haveria um valor a priori atribuído à tradução. O valor da tradução é atribuído por nós, seres humanos, quando descobrimos que ela tem uma importância para nós. Quando, de algum modo, ela nos toca. E esse valor poderia ser atribuído de modos variados. Um leitor que leu um livro traduzido pode ter uma experiência fenomenal durante a leitura. Assim, ele será capaz de criar vínculos com o texto e passará a considerá-lo detentor de certa importância para a sua vida. Seja porque a história foi tocante; seja porque os personagens têm características singulares; seja porque a narrativa foi conduzida de maneira dinâmica. Os motivos são praticamente incontáveis. Entretanto, a leitura de um texto na língua original é uma experiência distinta e o contato com esse universo linguístico é extremamente enriquecedor sob os mais variados aspectos.

Mas quando Schopenhauer fala em “obra” ele estaria se referindo aos livros unicamente? A crítica/provocação de Schopenhauer foi tecida no Séc. XIX e de lá pra cá muita coisa mudou. Hoje a indústria da tradução está estabelecida e consolidada, e, além da área literária, há inúmeras áreas específicas: TI, tecnologia, games, negócios, marketing, governo e esfera pública, turismo e viagem, logística e transporte, e a própria área de humanidades – áreas com as quais tenho afinidade e trabalho –, entre outras. Com a expansão do capitalismo, a economia tornou-se cada vez mais diversificada e novos mercados foram surgindo. E, mais recentemente, com o advento do computador e da Internet, as fronteiras econômicas tornaram-se praticamente inexistentes – contudo, isso não quer dizer que todos os nossos problemas foram resolvidos; muito pelo contrário! Ainda convivemos com a pobreza, violência e tantos outros males (mas essa é uma outra discussão).

Ainda não existia o computador pessoal quando Schopenhauer escreveu a sua provocação. Muitos anos se passaram, e, em meu itinerário existencial, tive a oportunidade de presenciar aos poucos a popularização do uso dessas máquinas, aqui no Brasil, quando eu era adolescente; logo em seguida, o uso da Internet também seria popularizado. Neste sentido, desde muito cedo, introduzi o hábito de fazer o uso da tecnologia. Aliás, o meu primeiro emprego foi ligado à tecnologia da informação, mercado ao qual pude me dedicar por alguns anos de minha vida, isto é, quando estava saindo da adolescência e entrado na vida adulta. Foi um momento importante para o meu amadurecimento, uma vez que pude estabelecer um rico contato com aquele universo tecnológico e compreender certos detalhes de suas características.

Hoje, com o cenário tecnológico consolidado e com a Internet em pleno funcionamento, o ofício do tradutor pôde incorporar essas ferramentas em suas atividades cotidianas. Com a diversificação da economia e o surgimento dos mais variados mercados, a demanda pelos serviços de tradução cresce a cada ano. E uma das áreas com as quais tenho familiaridade seria… tecnologia da informação: em especial, hardware, software, computadores, sistemas, redes, guias de usuário e tradução de website. Ser especialista na área de tecnologia da informação é uma grande satisfação e a cada momento estou tendo a possibilidade de traduzir novos projetos para a área. Sou extremamente grato aos meus clientes por depositarem a sua confiança em meu trabalho. Tenho acompanhado os mais recentes desdobramentos tecnológicos devido ao fato de a área ser extremamente mutável. O emprego da inteligência artificial na indústria da tradução torna-se cada vez mais presente, e o debate sobre o papel da tradução automática versus tradução humana também acontece na mesma medida. Pretendo explorar o tema da inteligência artificial em outra publicação. Fique ligado!

Fico imaginando o que o Schopenhauer pensaria hoje, não sobre a tradução como produto final, mas sobre o ofício do tradutor, ou seja, a atividade tradutória. Hoje, temos a possibilidade de usufruir os mais variados recursos tecnológicos, desde computadores portáteis potentes, passando pelos aplicativos os mais diversos, até uma conexão em banda larga com a Internet capaz de abrir a comunicação com as pessoas do mundo inteiro, num simples clicar de botão. Para aumentar a nossa produtividade, é muito comum usarmos a ferramenta de tradução assistida por computador (CAT tool). São aplicativos com poderosos recursos que proporcionam ao tradutor, entre outras coisas, a capacidade de aumentar a produtividade e garantir a consistência terminológica em um projeto – uma funcionalidade extremamente importante, sobretudo, quando trabalhamos em projetos grandes, com muitas palavras, muitas delas repetidas. Não bastasse isto, esses aplicativos ainda oferecem ao tradutor a possibilidade de gravar uma memória de tradução, ou seja, um repositório alimentado a cada projeto, nos respectivos pares de idiomas, onde ficam gravadas as correspondências tradutórias para segmentos de frases inteiras. Sem contar ainda com a possibilidade de ser possível gerar bases terminológicas, ou seja, glossários, tornando o resultado final preciso e consistente do ponto de vista da uniformidade terminológica. Em linhas gerais, a cena atual para a atividade tradutória é mais ou menos essa. E pensar que num passado não muito distante os escritores usavam uma pena para escrever…

Deste modo, além do valor afetivo, podemos atribuir valor comercial a um texto traduzido. A indústria da tradução gera riquezas e estreita laços comerciais entre os povos. Imagine a seguinte situação. Uma determinada marca pretende oferecer os seus produtos e consolidar a sua presença em um novo mercado. Para lograr sucesso, essa mesma marca precisará desenvolver uma estratégia que envolva, entre outras coisas, a comunicação. É neste momento que entra em cena os serviços de um tradutor. Dependendo do modo pelo qual essa marca gostaria de entrar nesse mercado, todo o material relacionado ao produto, ou seja, os documentos, contratos, site da internet, material publicitário, ou mesmo os manuais técnicos e informativos, demandariam o tratamento linguístico. Neste sentido, o trabalho de um tradutor qualificado torna-se imprescindível para o êxito desta empreitada, uma vez que ele dispõe das qualificações e habilidades requeridas para dar o tratamento linguístico adequado ao material que será traduzido – ou localizado. E aqui encerro o texto com a seguinte reflexão: como seria a vida das pessoas sem o trabalho de um tradutor? Como uma empresa poderia explorar novos mercados se não houvesse um tradutor em sua estratégia de comunicação? Conte comigo, caso necessite de meus serviços linguísticos.

Muito obrigado pela atenção e espero que você tenha apreciado a leitura. Até a próxima publicação!

 

Referências:

[1] Schopenhauer, A.  A arte de escrever. Tradução, organização, prefácio e notas de Pedro Süssekind. Porto Alegre: L&PM, 2010 (coletânea de textos).

 

Sobre a pintura:

Paul Cézanne (1839-1906)

Pommes et oranges

Cerca de 1899

Óleo sobre tela

Musée d’Orsay, Paris, França


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