Em A relação do tradutor e seus pares, publicação inaugural do blog, explorei alguns
aspectos daquilo que compreendo ser uma relação profícua entre o tradutor e
seus pares. Mencionei, ainda que brevemente, sermos trabalhadores, cujo ofício
teria como matéria-prima a palavra. Além disso, disse também que exploraria
este espaço no sentido de promover o meu trabalho. Mas não é só isso. Pretendo,
também, explorar este espaço com o objetivo de exercer uma atividade que me
proporciona muito prazer: escrever. E penso que fazer isso publicamente, entre
outras coisas, poderia ser extremamente oportuno: por um lado, demonstrar aos
meus clientes, ou mesmo ao estimado leitor interessado em acompanhar o blog,
que escrever um texto de autoria própria pode ser um modo de apresentar as
minhas capacidades de lidar com as palavras, por outro, que o tradutor também
pode promover o pensamento. Escrever pode ser não só um meio de expressar as
ideias, mas também uma maneira de tornar o pensamento inteligível por meio das
palavras. E quando essa capacidade de expressão pode acontecer na língua
materna isso se torna ainda mais gratificante. Quando penso que este texto
poderá ainda ser vertido por mim para inglês e francês, fico tocado com o fato
de que outras pessoas poderão ter contato com esta mensagem. “Escrever” – verbo
sedutor. Hoje, tecerei algumas considerações sobre o valor da tradução.
Diferentemente do que muitos avaliam,
tenho uma certa tendência a considerar que não há um valor a
priori atribuído à tradução. Entretanto, isto não quer dizer que a
tradução não tem valor algum, uma vez que a tradução é uma atividade… humana,
feita por seres humanos! E, por ser uma atividade humana, estaria aí a sua
importância. Em Parerga e paralipomena, Schopenhauer (1788 –
1860), bem ao seu estilo, elabora uma crítica em relação à tradução, ele
afirma:
Toda tradução é uma
obra morta, e seu estilo é forçado, rígido, sem naturalidade; ou então se trata
de uma tradução livre, isto é, que se contenta com um à peu près,
sendo portanto falsa. Uma biblioteca de traduções é como uma galeria de arte
que só expõe cópias. E quanto às traduções dos escritores da Antiguidade, elas
são um sucedâneo de suas obras assim como o café de chicória é um sucedâneo do
verdadeiro café.[1]
Aliás, uma crítica ou uma provocação,
visto que o filósofo de Danzig cultivava e era um estudioso das letras?
Diferentemente do que afirma Schopenhauer, não penso que a tradução é uma obra
“morta”; muito pelo contrário! Ela vive a partir do momento em que pelo menos
dois idiomas começam a estabelecer uma rica relação de convivialidade. E isso
acontece, em grande medida, porque o tradutor, em virtude de suas habilidades
linguísticas – sempre em aperfeiçoamento constante –, é capaz de verter uma
obra do idioma de origem para o idioma de chegada, ou um texto, ou um poema, se
assim preferir. Ou seja, além de considerável experiência com o idioma materno,
com o qual o tradutor tem uma profunda relação existencial, em certo momento da
vida, o profissional das letras estabeleceu um íntimo contato com um outro
idioma, aprendendo a segunda língua – terceira, quarta, etc. –, e assim, em
certo sentido, também estabeleceu contato com outro povo (o seu modo de vida ou
– e por que não? – o seu modo de pensar).
Quanto ao estilo da obra, creio que
essa avaliação tende a ser um pouco relativa. Há tradutores da área literária
que fazem um trabalho de tradução extremamente bem feito, e a leitura do texto
traduzido é extremamente agradável. O estilo é fluído e elegante. O trabalho
desses profissionais é extremamente importante, pois nem todas as pessoas falam
um segundo idioma. Quando uma obra literária cujo texto original foi escrito,
por exemplo, em inglês ou francês, é traduzida para, por exemplo, português –
ou vice-versa –, o trabalho do tradutor tem um papel notável: a atividade de
tradução seria responsável por promover o encontro entre autor e leitor. Dito
de outro modo, procuro entender o ofício do tradutor como uma capacidade de
viabilizar o contato entre, pelo menos, duas pessoas, ou se preferir, uma
capacidade de edificar pontes. Por outro lado, penso que a crítica de
Schopenhauer possa fazer sentido quando um texto traduzido não tenha um
resultado final satisfatório, isto é, quando a inteligibilidade do texto
traduzido está comprometida, e isso acontece pelos mais variados motivos. Ainda
assim, penso que o estilo de um texto traduzido pode ser extremamente elegante
quando bem traduzido.
Neste sentido, quando é requisitado a
traduzir uma obra, o tradutor está ciente de que o seu trabalho deve ser bem
feito, e que o texto a ser traduzido deve ser bem traduzido. Palavras óbvias,
por vezes, precisam ser relembradas. É claro que há dificuldades durante o
percurso e nem sempre é possível encontrar a solução ideal para a tradução de
um termo ou uma expressão, uma vez que, dependendo do texto, certas coisas são
praticamente impossíveis de ser traduzidas. Há certas perdas durante a
atividade de tradução, e isso é inevitável, afinal, o texto foi concebido em
outro idioma. Há elementos linguísticos e a própria maneira de pensar está em
jogo. Isso salta ainda mais aos olhos quando a obra a ser traduzida é um poema.
No entanto, penso que a atividade de tradução pode ser extremamente rica para o
tradutor, e se o seu trabalho for capaz de expressar essa riqueza tanto melhor
para o leitor. Assim, não concordo com Schopenhauer quando ele afirma que em
uma biblioteca de obras traduzidas haveria apenas cópias. Penso que, do ponto
de vista comparativo, há o texto original e o texto traduzido. Desta forma,
ambos são completamente diferentes – obviamente. Contudo, quando a atividade de
tradução torna o texto inteligível para a língua de chegada, temos um texto traduzido
que teria, entre outras coisas, a ideia de expressar a inteligibilidade do
texto original.
Assim, sobretudo quando se trata de
um texto de uma obra literária, a atividade de tradução ganha contornos
criativos. Como avaliar um texto traduzido? Qual o seu valor para um leitor
que, pelos mais variados motivos, não conhece ou fala o idioma do autor? Há
muitos textos clássicos escritos em grego ou latim que foram traduzidos para as
línguas modernas e graças ao trabalho de tradução tornamo-nos capazes de
estabelecer contato com o universo daqueles autores, ainda que de maneira
limitada. Entretanto, as obras originais são únicas e aí está um de seus
valores. Aliás, deixo uma pergunta: você seria capaz de descobrir os tesouros
legados para nós pelos autores clássicos se aprendesse um idioma antigo, como o
latim ou grego?
Portanto, um texto traduzido é o
resultado final de todo um itinerário existencial vivido pelo profissional da
tradução. E é nessa medida que reside o valor dessa atividade. Ou seja, eu
dizia há pouco que tenho a tendência a considerar que não haveria um
valor a priori atribuído à tradução. O valor da tradução é
atribuído por nós, seres humanos, quando descobrimos que ela tem uma
importância para nós. Quando, de algum modo, ela nos toca. E esse valor poderia
ser atribuído de modos variados. Um leitor que leu um livro traduzido pode ter
uma experiência fenomenal durante a leitura. Assim, ele será capaz de criar
vínculos com o texto e passará a considerá-lo detentor de certa importância
para a sua vida. Seja porque a história foi tocante; seja porque os personagens
têm características singulares; seja porque a narrativa foi conduzida de
maneira dinâmica. Os motivos são praticamente incontáveis. Entretanto, a
leitura de um texto na língua original é uma experiência distinta e o contato
com esse universo linguístico é extremamente enriquecedor sob os mais variados
aspectos.
Mas quando Schopenhauer fala em
“obra” ele estaria se referindo aos livros unicamente? A crítica/provocação de
Schopenhauer foi tecida no Séc. XIX e de lá pra cá muita coisa mudou. Hoje a
indústria da tradução está estabelecida e consolidada, e, além da área
literária, há inúmeras áreas específicas: TI, tecnologia, games, negócios,
marketing, governo e esfera pública, turismo e viagem, logística e transporte,
e a própria área de humanidades – áreas com as quais tenho afinidade e trabalho
–, entre outras. Com a expansão do capitalismo, a economia tornou-se cada vez
mais diversificada e novos mercados foram surgindo. E, mais recentemente, com o
advento do computador e da Internet, as fronteiras econômicas tornaram-se
praticamente inexistentes – contudo, isso não quer dizer que todos os nossos
problemas foram resolvidos; muito pelo contrário! Ainda convivemos com a
pobreza, violência e tantos outros males (mas essa é uma outra discussão).
Ainda não existia o computador
pessoal quando Schopenhauer escreveu a sua provocação. Muitos anos se passaram,
e, em meu itinerário existencial, tive a oportunidade de presenciar aos poucos
a popularização do uso dessas máquinas, aqui no Brasil, quando eu era
adolescente; logo em seguida, o uso da Internet também seria popularizado.
Neste sentido, desde muito cedo, introduzi o hábito de fazer o uso da
tecnologia. Aliás, o meu primeiro emprego foi ligado à tecnologia da
informação, mercado ao qual pude me dedicar por alguns anos de minha vida, isto
é, quando estava saindo da adolescência e entrado na vida adulta. Foi um
momento importante para o meu amadurecimento, uma vez que pude estabelecer um
rico contato com aquele universo tecnológico e compreender certos detalhes de
suas características.
Hoje, com o cenário tecnológico
consolidado e com a Internet em pleno funcionamento, o ofício do tradutor pôde
incorporar essas ferramentas em suas atividades cotidianas. Com a
diversificação da economia e o surgimento dos mais variados mercados, a demanda
pelos serviços de tradução cresce a cada ano. E uma das áreas com as quais
tenho familiaridade seria… tecnologia da informação: em especial, hardware,
software, computadores, sistemas, redes, guias de usuário e tradução de
website. Ser especialista na área de tecnologia da informação é uma grande
satisfação e a cada momento estou tendo a possibilidade de traduzir novos
projetos para a área. Sou extremamente grato aos meus clientes por depositarem
a sua confiança em meu trabalho. Tenho acompanhado os mais recentes
desdobramentos tecnológicos devido ao fato de a área ser extremamente mutável.
O emprego da inteligência artificial na indústria da tradução torna-se cada vez
mais presente, e o debate sobre o papel da tradução automática versus tradução
humana também acontece na mesma medida. Pretendo explorar o tema da
inteligência artificial em outra publicação. Fique ligado!
Fico imaginando o que o Schopenhauer
pensaria hoje, não sobre a tradução como produto final, mas sobre o ofício do
tradutor, ou seja, a atividade tradutória. Hoje, temos a possibilidade de
usufruir os mais variados recursos tecnológicos, desde computadores portáteis
potentes, passando pelos aplicativos os mais diversos, até uma conexão em banda
larga com a Internet capaz de abrir a comunicação com as pessoas do mundo
inteiro, num simples clicar de botão. Para aumentar a nossa produtividade, é
muito comum usarmos a ferramenta de tradução assistida por computador (CAT
tool). São aplicativos com poderosos recursos que proporcionam ao tradutor,
entre outras coisas, a capacidade de aumentar a produtividade e garantir a
consistência terminológica em um projeto – uma funcionalidade extremamente
importante, sobretudo, quando trabalhamos em projetos grandes, com muitas
palavras, muitas delas repetidas. Não bastasse isto, esses aplicativos ainda
oferecem ao tradutor a possibilidade de gravar uma memória de tradução, ou
seja, um repositório alimentado a cada projeto, nos respectivos pares de
idiomas, onde ficam gravadas as correspondências tradutórias para segmentos de
frases inteiras. Sem contar ainda com a possibilidade de ser possível gerar
bases terminológicas, ou seja, glossários, tornando o resultado final preciso e
consistente do ponto de vista da uniformidade terminológica. Em linhas
gerais, a cena atual para a atividade tradutória é mais ou menos essa. E pensar
que num passado não muito distante os escritores usavam uma pena para escrever…
Deste modo, além do valor afetivo,
podemos atribuir valor comercial a um texto traduzido. A indústria da tradução
gera riquezas e estreita laços comerciais entre os povos. Imagine a seguinte
situação. Uma determinada marca pretende oferecer os seus produtos e consolidar
a sua presença em um novo mercado. Para lograr sucesso, essa mesma marca
precisará desenvolver uma estratégia que envolva, entre outras coisas, a
comunicação. É neste momento que entra em cena os serviços de um tradutor.
Dependendo do modo pelo qual essa marca gostaria de entrar nesse mercado, todo
o material relacionado ao produto, ou seja, os documentos, contratos, site da
internet, material publicitário, ou mesmo os manuais técnicos e informativos,
demandariam o tratamento linguístico. Neste sentido, o trabalho de um tradutor
qualificado torna-se imprescindível para o êxito desta empreitada, uma vez que
ele dispõe das qualificações e habilidades requeridas para dar o tratamento
linguístico adequado ao material que será traduzido – ou localizado. E aqui
encerro o texto com a seguinte reflexão: como seria a vida das pessoas sem o
trabalho de um tradutor? Como uma empresa poderia explorar novos mercados se
não houvesse um tradutor em sua estratégia de comunicação? Conte comigo, caso
necessite de meus serviços linguísticos.
Muito obrigado pela atenção e espero
que você tenha apreciado a leitura. Até a próxima publicação!
Referências:
[1] Schopenhauer, A. A
arte de escrever. Tradução, organização, prefácio e notas de Pedro
Süssekind. Porto Alegre: L&PM, 2010 (coletânea de textos).
Sobre a pintura:
Paul
Cézanne (1839-1906)
Pommes
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Musée d’Orsay, Paris, França