Saturday, February 24, 2024

Experimento narrativo I

 






Ulisses estava sentado na beira da praia naquela manhã de domingo. Há algum tempo, observava o vai e vem das ondas. O clima era muito agradável e a luz do sol irradiava em profusão por todos os lados. Em movimentos de alternância encadeada, o calor do sol e a brisa fresca que vinha do mar iam ao encontro de sua presença. Naquela paisagem, a manifestação da natureza era evidente: pássaros entoavam cânticos exuberantes, a geografia costeira, com as suas cores e formas matizadas, esculpiam em um único recorte aquilo que os olhos conseguiam apreender, e no horizonte, uma linha divisória bem traçada delineava muito claramente céu e mar. Não era impossível deixar de observar também, de um lado, a instabilidade das pequenas embarcações flutuando na água, e de outro, a estabilidade e constância imemoriáveis dos coqueiros fincados na terra. Toda a ambientação e os seus mais variados elementos coexistiam tranquilamente naquela paisagem. Era muito bom pisar em terra firme. Entretanto, nem sempre as coisas foram assim.

Não era a primeira vez que Ulisses ia à praia, e aquele local especificamente havia sido descoberto há pouco tempo – a costa litorânea era imensa. Desde então, passou a visitá-lo com frequência, sobretudo aos domingos pela manhã. As manhãs de domingo na praia eram especialmente apropriadas para o cultivo do pensamento e das mais variadas vivências intelectuais. O ambiente iluminado e a natureza generosamente abundante eram particularmente convidativos para essa prática. Naquele ambiente, os mais diversos pensamentos passavam pela cabeça de Ulisses e cada um deles nascia espontaneamente. Não havia mais nada que impedisse isso. As memórias de viagem também estavam presentes em suas vivências. Então, alguns aspectos do périplo de retorno a Ítaca passaram a ocupar os seus pensamentos.

Aquela viagem havia sido permeada por muitas dificuldades. Ao deixar Troia, Ulisses vagou juntamente com os seus companheiros pelos caminhos mais improváveis. Navegar por águas tormentosas e enfrentar as circunstâncias mais adversas passou a ser algo habitual na vida de nosso personagem ao longo de muitos anos. O paradoxo fazia-se em onipresença. A cada vez que a embarcação ganhava o mar e penetrava os rincões mais recônditos, Ulisses tinha a sensação de que, em vez de estar seguindo o seu caminho, ele e os seus companheiros pareciam estar cada vez mais perdidos. Entretanto, a presença de seus companheiros sempre foi um elemento decisivo para que Ulisses mantivesse a confiança de que aquela situação poderia ser enfrentada com êxito.

Nos mais variados trechos de viagem, Ulisses passava boa parte do tempo conversando com os seus companheiros. Os assuntos eram os mais variados, uma vez que o nosso personagem tinha muito apreço pela arte da conversação. Era assim que os laços de amizade eram fortalecidos entre eles. Ulisses e os seus companheiros não deixavam de trocar as mais variadas impressões sobre a vida. Certamente trocavam considerações sobre as dificuldades e davam força um para o outro para que se fortalecessem. A estação de meia idade era oportuna para isso. Com o alvorecer da maturidade, os viajantes podiam fazer um balanço retrospectivo em relação às experiências pregressas e ainda sonhar com tudo o que poderia acontecer ao longo dos anos que poderiam ter pela frente. Então, o vínculo entre Ulisses e os seus companheiros representava um elo cooperativo para que pudessem lidar com a força da natureza, e se conseguissem sair vivos, chegar em Ítaca.

Houve momentos críticos, sem dúvida. Por exemplo, Ulisses ficava imaginando como era possível uma embarcação precária ter sido capaz de enfrentar a agitação das águas e toda a revolta do mar nos trechos mais tormentosos. As noites de escuridão à deriva e o período que ficavam sem água e comida eram praticamente insuportáveis. No entanto, Ítaca sempre esteve em seu horizonte e seria dali que Ulisses tiraria as suas forças para continuar viajando rumo ao lar. Por outro lado, o nosso personagem fazia algumas comparações. Por exemplo, para ter a real noção da situação em que se encontrava, Ulisses comparava a viagem terrestre com a marítima. Na viagem terrestre, era possível garantir a orientação espacial por meio dos caminhos. Havia uma rota traçada em terra firme na qual era possível caminhar. Durante a caminhada, havia a sensação de avanço espacial, ou seja, o deslocamento da origem para o destino era evidente. Entretanto, isso não acontecia na viagem marítima! Ulisses e os seus companheiros estavam completamente jogados e desamparados na instabilidade e inconstância marítimas. Não havia um caminho delineado no qual era possível avançar. Não era possível visualizar um caminho. Os viajantes estavam completamente desorientados e avançavam de acordo com o capricho do sopro dos ventos. Foi assim que chegaram nos lugares mais inesperados.

Ulisses não se esquece, particularmente, de uma noite chuvosa e cheia de relâmpagos. A escuridão quase se impôs diante de seus olhos. Ulisses e os seus companheiros, entretanto, seguiram adiante e contornaram a situação adversa com maestria. Eles acabariam chegando em terra firme, entretanto a sensação de segurança era fugaz, uma vez que havia muito trajeto pela frente. Por outro lado, Ulisses nunca deixou de manter Ítaca em seu horizonte.

Uma outra memória que passou pela cabeça de Ulisses era notadamente inquietante. Havia um trecho de viagem extremamente perigoso. Ulisses já havia sido alertado em relação ao perigo do canto da sereia. Naquela época, havia um mito segundo o qual as sereias eram uma ameaçava para os marinheiros. Quando entoavam cânticos, elas atraiam sedutoramente os navegantes. Se caíssem em seus encantos, os marinheiros perderiam a razão, a consciência e o senso de realidade. Então, eles eram simplesmente destruídos. Diante do perigo iminente, Ulisses organizou todo o seu aparato de defesa para que pudesse proteger a si e aos seus companheiros. Por outro lado, o nosso personagem pensava como eram desafortunados os navegantes que não eram capazes de mobilizar o aparato de defesa para que pudessem se proteger diante do perigo. Mas o mais triste era que esses navegantes nem tinham um aparato de defesa!

Segundo as orientações que havia recebido, Ulisses e os seus companheiros deveriam colocar cera doce nos dois ouvidos para impedir que as notas melodiosas, o tom supostamente adequado e o timbre ilusoriamente agradável atingissem os seus ouvidos. O canto vocal parece ser um fenômeno artístico extremamente agradável aos ouvidos, contudo, o canto da sereia era uma manifestação sedutoramente perigosa cuja finalidade era simplesmente aniquilar a vida dos marinheiros. Ulisses e os seus companheiros, atentos e vigilantes,  prepararam o aparato de defesa e cruzaram o trecho incólumes, ainda que tivessem recebido notícias de que outros navegantes não haviam sobrevivido. Depois da experiência vivenciada por Ulisses e os seus companheiros, cada um deles pôde se reconciliar com a humanidade que habitava neles.

Ulisses ainda estava sentado na praia e o seu pensamento caminhava livremente. Então, ele fez uma ponderação. Navegar por águas tormentosas e enfrentar as circunstâncias mais adversas seria algo habitual até certo momento de sua vida. Neste momento, depois de tanto navegar, e passar pelas situações mais inacreditáveis, o nosso personagem lembrou do momento em que chegou em casa e o estado no qual ela se encontrava. O cenário era desolador. Os seus entes queridos haviam passado por situações inimagináveis no período de sua ausência. Era doloroso constatar aquilo. Entretanto, ao se livrar dos forasteiros que haviam invadido a sua casa, também era extremamente reconfortante lembrar do momento de seu reencontro com Telêmaco e Penélope depois de tantos anos:

 

– E pensar que, depois de todo esse tempo, eles chegaram a imaginar que não me encontrariam mais e que eu estaria morto.

 

Mesmo com as feições alteradas em virtude do disfarce que precisou usar para entrar em casa, Ulisses nunca se esqueceu que Argos, o seu cão, foi o único ser capaz de reconhecê-lo quando retornou para casa depois da longa jornada. O nosso personagem tinha um apego muito grande pelo animalzinho e foi extremamente emocionante tê-lo encontrado novamente. Não foi fácil chegar em casa depois de tanto tempo. Com o uso do disfarce, os forasteiros não foram capazes de reconhecer Ulisses. De fato, havia passado muito tempo, e Ulisses, transformado pela jornada, já não era a mesma pessoa. O nosso personagem também não deixaria de lembrar de seus companheiros, que ficaram ao longo do caminho, impossibilitados de chegar em Ítaca juntamente com Ulisses.

Então, depois de algumas horas ali sentado, contemplando a paisagem, sentindo a brisa do mar e o sol na pele, o nosso personagem resolveu se levantar, dar uma volta e inflar os pulmões com o ar litorâneo. A praia é um local que traz muitas lembranças e perceber todas aquelas impressões sensoriais fazia com que Ulisses se sentisse cada vez mais vivo. Agora, a breve caminhada pela orla, em terra firme, levá-lo-ia para o restaurante de praia para que pudesse encontrar os amigos e almoçar tranquilamente juntos.

 

Sobre a pintura:

Vincent van Gogh (1853 – 1890)

Vista do mar em Scheveningen

Haia, agosto de 1882

óleo sobre papel sobre tela

Van Gogh Museum, Amsterdam (State of the Netherlands, bequest of A.E. Ribbius Peletier)


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