Sunday, February 27, 2022

Duas etapas da tradução: uniformidade terminológica e investigação terminológica

 






ara temporum felicitas, ubi sentire, quæ velis; E quæ sentias, dicere licet
Tacitus


Eis mais uma publicação em nosso blog. Sejam bem-vindo(a)s mais uma vez! Desde o primeiro artigo, estamos percorrendo juntos algumas das trilhas de nosso périplo tradutório. O ponto de partida teve um início determinado em  A relação do tradutor e seus paresEm seguida, tivemos a oportunidade de fazer uma passagem por Alguém disse que a tradução é…. Posteriormente, o nosso itinerário desembarcou na pergunta: Palavras: há um significado intrínseco? A pergunta, mais que uma reflexão, propõe uma provocação. Há uma certa inclinação em atribuir um significado intrínseco às palavras. Entretanto, quando estamos traduzindo um texto, percebemos que as palavras são usadas de modos diversos em contextos diferentes. Quando o uso das palavras transita de um contexto para o outro, percebemos que é possível haver mudança no significado de uma sentença: uma cadeira pode ser usada para trabalhar, para relaxar na sala principal ou para tocar piano. Deste modo, repensar a existência do suposto significado intrínseco das palavras pode ser uma atividade salutar para a prática da tradução. Novas nuances semânticas podem ganhar existência. Mas, se dermos um passo adiante, a reflexão pode ser um pouco mais abrangente: o que é uma palavra? Obviamente, uma possível resposta dependeria do objeto de reflexão. Para as línguas ocidentais a pergunta pode fazer algum sentido; entretanto, para as línguas originadas a partir de outras regiões e culturas, talvez ela não faça sentido algum. Na publicação de hoje, gostaria de discorrer algumas linhas sobre duas etapas da tradução: a uniformidade terminológica e a investigação terminológica.

No mundo da tradução técnica e comercial, quando o profissional da palavra é requisitado para trabalhar em um projeto, por exemplo, nos pares linguísticos inglês>português ou francês>português, ele recebe uma série de instruções, diretrizes, materiais de referência ou mesmo o guia de estilo juntamente com o projeto de tradução. Entre as instruções gerais, é muito comum encontrarmos a orientação “manter a uniformidade terminológica” – sobretudo nos projetos com uma grande quantidade de palavras. Geralmente, um projeto de tradução é quantificado em número de palavras, e quanto maior o número de palavras, maior será o trabalho dedicado para a conclusão do projeto. Mas, o que seria “uniformidade terminológica” e como associá-la ao projeto?

A uniformidade terminológica, entre outras coisas, tem o objetivo de tornar o projeto consistente. E a partir do momento em que um projeto é consistente ele tem qualidade. Um projeto de tradução pode variar em tamanho: desde um projeto com uma única palavra até um projeto com milhares de palavras – ou mesmo milhões de palavras. A título de ilustração, pensemos em um projeto na área de TI com 90 mil palavras. Quem já teve a oportunidade de traduzir na área sabe que há muitos desafios envolvidos. No meu ponto de vista, um dos maiores desafios seria encontrar a tradução adequada para os inúmeros termos técnicos e nome de produtos para a língua de chegada. Um projeto de 90 mil palavras não é um projeto pequeno e seria necessário dedicar um tempo considerável para concluir a tradução.

Na indústria da tradução existem recursos tecnológicos extremamente úteis para auxiliar a vida do profissional da palavra. Como em muitas outras áreas, o computador tornou-se indispensável para a rotina de trabalho. Ele agiliza e aumenta a produtividade. Mas, existem recursos especificamente voltados para o mundo da tradução. Refiro-me às ferramentas de tradução assistida por computador (em inglês, CAT tools). Existem inúmeras dessas ferramentas, e já tive a oportunidade de trabalhar com algumas delas. Destaco as minhas experiências positivas com Trados StudiomemoQ, SmartcatWordbeeMemsource CloudPassoloXTMLingotek, Wordfast Pro e Smartling.

Para entendermos como a uniformidade terminológica é associada a um projeto, precisamos entender brevemente como funcionam as ferramentas de tradução. Imaginemos que o nosso projeto de TI com 90 mil palavras possui 10 arquivos, em formato Word, cada um com nove mil palavras. A língua de origem é o inglês e a de chegada é o português. Para que o material possa ser traduzido pelo profissional da palavra a partir da ferramenta de tradução, é necessário criar o projeto nela. No momento da criação do projeto, indicamos a língua de partida e a língua de chegada. Depois indicamos os arquivos a serem traduzidos e, na sequência, indicamos a memória de tradução e o glossário do projeto.

Geralmente, tudo isso é enviado para o profissional da palavra quando o gerente de projetos atribui a tarefa. A ferramenta de tradução, depois da criação do projeto, divide todo o texto a ser traduzido em segmentos. E, na própria ferramenta de tradução, conforme a tradução avança, surgem as correspondências a partir da memória de tradução. Quando houver as correspondências – obviamente, quando não houver, quem faz a tradução é o próprio tradutor. Por outro lado, conforme os termos técnicos são identificados no texto dos segmentos de origem, o glossário propõe a tradução específica. Imagine o termo Cloud Environment. Ele pode ser traduzido para português como “ambiente em nuvem”, “ambiente na nuvem”, “ambiente da nuvem” ou “ambiente de nuvem”. Agora imagine que o termo aparecerá ao longo do projeto muitas vezes. Qual termo escolher e como empregá-lo ao longo da tradução para garantir a uniformidade terminológica? É exatamente aqui que entra o glossário. Imagine que o glossário enviado pelo gerente de projetos propõe “ambiente na nuvem”; então essa solução será exatamente empregada ao longo de todo o projeto. Deste modo, com o auxílio de um glossário, acessível como um recurso de uma das ferramentas de tradução, o profissional da palavra será capaz de manter a uniformidade terminológica, garantir toda a consistência do projeto, manter a sua qualidade e torná-lo inteligível.

Perceba que uma escolha foi feita a partir de quatro possibilidades. Ou seja, num primeiro momento, o profissional da palavra faz a tradução e propõe as soluções possíveis – “ambiente em nuvem”, “ambiente na nuvem”, “ambiente da nuvem” ou “ambiente de nuvem”. As opções são aceitáveis e igualmente possíveis, no entanto, “ambiente na nuvem” foi a escolha do cliente e, assim, devemos respeitá-la. A partir da escolha do cliente a entrada no glossário foi feita. Cloud Environment corresponde a ambiente na nuvem. Contudo, para que a escolha fosse feita, num primeiro momento, houve a necessidade de reconhecer a existência das quatro possibilidades terminológicas e, entre elas, uma opção tornou-se a mais adequada de acordo com as necessidades do cliente. Mas, o leitor mais curioso talvez esteja se perguntando: o que é um ambiente na nuvem? Permita-me a breve digressão. Em linhas gerais, o ambiente na nuvem é um conceito amplamente utilizado no mundo da tecnologia da informação. O ambiente na nuvem é constituído por servidores interconectados por meio de uma infraestrutura de rede alocados em um centro do processamento de dados que oferece serviços de processamento de dados, alocação de recursos computacionais e software, entre outras coisas. O fato desse ambiente ser acessível por meio de uma conexão remota, geralmente pela Internet, acaba gerando a ideia da nuvem. Em suma, o ambiente na nuvem nada mais é que um conjunto de servidores conectados em rede em um centro de processamento de dados que oferecem serviços computacionais remotamente acessíveis.

 

 

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Quando o profissional da palavra recebe o projeto para traduzir, vimos que também é comum receber a orientação “manter a uniformidade terminológica”. O gerente de projetos envia todo o material de tradução, entre os quais uma memória de tradução e um glossário. A construção de um glossário envolve a criação de um repositório com inúmeros termos técnicos da língua de origem para a língua de destino. E a construção desse repositório é o resultado concreto do processo de tradução. Traduzir, por sua vez, envolve, entre outras coisas, investigar para determinar a solução terminológica mais adequada.

Em A relação do tradutor e seus pares fiz uma analogia. Costumo comparar a atividade tradutória a uma aventura. Quando estamos tendo dificuldade para determinar a tradução de um termo, o convívio com as palavras fica tenso. Neste momento, precisamos mobilizar todo o nosso aparato investigativo para encontrar a solução mais adequada. Neste sentido, estamos falando em investigação terminológica. Aqui vale recorrer aos mais variados recursos linguísticos: dicionários bilingues convencionais, dicionários de expressões idiomáticas, bases terminológicas, imagens ilustrativas, vídeos, animações, materiais de referência, etc. Observe que, neste caso, recorremos a inúmeras fontes de pesquisa sempre tendo em vista o resultado mais satisfatório em termos linguísticos. Os meios de pesquisas são variados, e eles podem ser online offline, ou seja, Internet ou gramáticas e dicionários de papel. E, quando boa parte desses recursos são consultados sem que a tradução seja encontrada, surge a possibilidade de recorrer ao gerente de projetos para que seja possível solicitar mais informações sobre o termo em questão. Colocar em prática a investigação terminológica pressupõe que o nosso problema será resolvido de um modo racional – e de modo satisfatório para o cliente. A aventura é instigante, sobretudo quando o tempo pressiona.

Perceba que, ao desencadearmos a investigação terminológica, mobilizamos o nosso pensamento em busca de alguma coisa. Segundo a etimologia, “investigar” vem do latim investigare, ou seja, seguir os vestígiosContudo, na antiguidade, e mais especificamente no período helenista, havia uma “escola” de pensamento grega que conferia à investigação (em grego zétesis) um lugar de destaque. Estamos falando do ceticismo. Para os céticos antigos (skeptikos), havia três tipos de filosofia: a dogmática, a acadêmica e a cética. Ainda de acordo com eles, a filosofia dogmática caracterizava-se por ter pretensamente encontrado a verdade – como era o caso das escolas filosóficas de Aristóteles, dos estoicos e outras. Por outro lado, a filosofia acadêmica julgava ser impossível descobrir a verdade – como era o caso para Clitômaco, Carnéades e outros acadêmicos. Por fim, os céticos prosseguiam com a investigação. Sabemos disso graças ao relato de Sexto Empírico (séc. II d.C. – a data exata e o local de nascimento são desconhecidos), legado à história da filosofia, por meio das Hipotiposes Pirrônicas.

O profissional da palavra encontra inúmeros desafios diante do texto em língua estrangeira. O texto é articulado por meio de uma variedade de palavras em sentenças. Ora, para que a investigação possa acontecer, é necessário haver um objeto de investigação. A variedade de palavras em sentenças constitui o objeto de investigação. Portanto, a investigação pode ser uma atividade contínua e ininterrupta. Por outro lado, se levarmos em conta que as palavras podem não ter um significado intrínseco, a investigação pela inteligibilidade do sentido também pode ser uma atividade igualmente contínua e ininterrupta. No nosso exemplo, utilizamos o termo Cloud Environment. A partir do momento em que o termo foi apresentado para tradução, o pensamento desencadeou a investigação terminológica em busca da melhor solução tradutória. No caso, chegamos nas soluções propostas: “ambiente em nuvem”, “ambiente na nuvem”, “ambiente da nuvem” ou “ambiente de nuvem”. Todas as soluções são possíveis. Porém, a solução escolhida com um sentido inteligível foi inserida no glossário: “ambiente na nuvem”.

A linguagem pode ser um meio poderoso para a expressão do pensamento. Por meio das palavras podemos expressar as ideias. No caso de um manual de instruções, é possível organizar uma série de informações e orientações para a utilização apropriada de um dispositivo eletrônico, por exemplo. Ocorre que nem sempre as palavras são capazes de exprimir integralmente o que se pensa. Tenho a impressão de que as coisas se tornam ainda mais complexas quando nos referimos aos afetos, sentimentos e paixões. Como exprimir todo este “universo” em palavras? Por outro lado, somos seres humanos e enfrentamos diversas dificuldades para viver no dia a dia. Seria a linguagem um aparato cognitivo voltado para a sobrevivência?

Além da investigação, a prática tradutória envolve outras habilidades intelectuais. A partir do momento em que reconhecemos a existência da multiplicidade das palavras, podemos reconhecer a possibilidade da existência de sentidos diversos. Para as línguas ocidentais, faz sentido falar em palavras, entretanto, isso pode não fazer sentido algum para as línguas de outras culturas, assim como foi dito acima. Por outro lado, disse há pouco que o texto é articulado por meio de uma variedade de palavras em sentenças. O conjunto de sentenças forma argumentos, e o conjunto de argumentos forma parágrafos. Para que possamos torná-los inteligíveis recorremos ao entendimento. Então, uma interpretação pode ser construída. Entretanto, nem sempre a interpretação de um texto é correta, e quando ela é submetida ao exame crítico da análise atenta e pormenorizada, a interpretação demonstra ser equivocada ou incoerente. Ou seja, uma interpretação pode ser um modo possível de entender um texto, mas ela é passível ao debate e apreciação crítica. E quem lê nunca está só.

Quando estamos no âmbito da literatura, ou mesmo da filosofia, a interpretação de um texto pode ser tão variada quanto o número de leitores. Na literatura, estamos falando de arte e o seu produto, em grade medida, tem a ver com a ficção. Aqui, a imaginação encontra um poderoso meio de expressão, e as palavras ganham uma coloração e contorno fantásticos. Por outro lado, na filosofia, estamos falando de racionalidade e o seu produto, em grande medida, tem a ver com a argumentação. Aqui, a razão encontra um terreno fértil para expressar o pensamento, e as palavras ganham uma coloração e contorno áridos. Contudo, a palavra é o meio comum de expressão tanto para a literatura quanto para a filosofia.

Segundo o relato de Sexto Empírico, pessoas talentosas, diante das anomalias presentes nas coisas da vida ordinária, propuseram-se a investigar. Assim, motivadas pela ideia de que seria possível determinar o que era verdadeiro e o que era falso, elas poderiam atingir a tranquilidade (ataraxia). Deste modo, a partir do momento em que eram capazes de submeter ao escrutínio o que se lhes apresentava em uma determinada circunstância, constatou-se que, para cada ponto de vista, era possível formular um outro ponto de vista com força igualmente persuasiva. A linguagem, por sua vez, apresenta uma infinidade de desafios durante a rotina de trabalho. O texto escrito do idioma de partida, quando traduzido para o idioma de chegada, deve possuir certas qualidades: aqui temos dois textos – o original e a tradução (ambos inteligíveis e com força igualmente persuasiva). Portanto, o texto traduzido pode atender às mais variadas necessidades linguísticas do público-alvo. Os meus pares linguísticos são ingles>português e francês>português. Mas, se considerarmos que as palavras nem sempre são capazes de exprimir integralmente o que se pensa, ou mesmo os afetos, sentimentos e paixões, volto a formular a pergunta: o que é uma palavra?

 

Muito obrigado pela atenção e espero que você tenha apreciado a leitura. Até a próxima publicação!

 

Sobre a pintura:

Claude Monet (1840-1926)

Impression, soleil levant

1872

Óleo sobre tela

Musée Marmottan Monet, Paris, França


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