As pessoas grandes
nunca entendem nada por elas mesmas, e é muito cansativo para as crianças
ficarem sempre explicando as coisas para elas
Antoine de
Saint-Exupéry, O pequeno príncipe
Assim como algumas pessoas, gosto da companhia dos livros. E passei a valorizar ainda mais esse convívio depois que comecei a refletir sobre tudo o que um rastro de palavras impresso em uma folha de papel pode representar. Em minha pessoa, a faceta de filósofo e a de tradutor têm algo em comum: ambas encontram na organicidade das palavras certos nutrientes que estimulam o nascimento de novos pensamentos. O filósofo, munido de seu ceticismo, em uma espécie de prontidão, coloca sob suspeita o que é passível de questionamento. O ceticismo oferece instrumentos importantes para a boa manutenção da lucidez, sobretudo nos dias em que um espesso nevoeiro paira na atmosfera. O tradutor, munido de suas habilidades tradutórias, sempre promovendo o convívio estreito de pelo menos dois idiomas, viabiliza a comunicação. A tradução oferece instrumentos importantes para ampliar as capacidades de comunicação, sobretudo nos dias em que a arte da conversação anda sendo tão maltratada. Neste sentido, quando se trata de palavra escrita, o olhar apreende a leitura que perpassa simultaneamente o filósofo e o tradutor.
Mas
não quero falar sobre a faceta de filósofo, nem sobre a faceta de tradutor.
Quero apenas explorar um pouco mais esse lado que permeia ambas as facetas: o
hábito da leitura. Filósofo e tradutor, também são, antes de mais nada,
leitores. O filósofo encontra nos livros legados ao longo da história da
filosofia as mais diversas correntes de pensamento. E cada uma delas pretende
transmitir os mais variados ensinamentos. Entretanto, o filósofo encontra no
ceticismo uma maior afinidade de pensamento. O tradutor encontra na sua
atividade profissional as oportunidades para edificar os mais diferentes
vínculos com a vida cotidiana. E cada uma dessas oportunidades representa a
viabilização prática de diferentes virtudes sociais. Entretanto, o tradutor
encontra na tradução técnica os meios para colocar em prática algumas
habilidades e reconhece a influência de Wittgenstein e suas reflexões sobre a
linguagem durante os momentos de trabalho. Assim, filósofo e tradutor encontram
no convívio com as palavras um hábito formidável. De um lado, temos a reflexão
crítica, e de outro, a investigação incessante em busca do significado e da
melhor solução tradutória para viabilizar a comunicação.
O
convívio com os livros é uma maneira de aperfeiçoar e dignificar o gênero
humano. Sou aquele tipo de pessoa que mantém uma relação dúbia com as palavras.
Calma, eu explico! Leio por prazer e por obrigação. Quando estou lendo por
prazer, sinto um tipo de satisfação muito agradável em virtude da ausência de
qualquer tipo de obrigação: escolher um exemplar na ainda modesta biblioteca – edificar
uma biblioteca é um empreendimento para uma vida inteira – é um momento muito
gostoso. Passar algumas horas na companhia de um autor ou autora é um momento
de encontro. As palavras escritas no papel oferecem a oportunidade de iniciar
um certo tipo de comunicação: autor e leitor vivem nas palavras o ponto de
encontro. Mas, ler por obrigação, durante as rotinas tradutórias, não implica
necessariamente a ausência de prazer na leitura. Trabalhar com diferentes
projetos de tradução, com prazos curtos e os mais variados tipos de exigência,
é algo apaixonante. Os desafios, os diferentes textos, as informações
envolvidas, os mais diversos aspectos representam uma oportunidade de colocar
em prática diferentes habilidades tradutórias. E o tradutor sempre aprende algo
novo em suas atividades, uma vez que as habilidades podem ser aperfeiçoadas em
diferentes situações.
A escrita deixa rastros de pensamentos em uma folha de papel em branco. Palavras, frases, parágrafos, páginas, capítulos e eis que temos um livro. Em incontáveis horas de trabalho, o percurso de um itinerário existencial torna-se inteligível por meio de palavras. Horas e horas de trabalho, mas e quanto a todo o tempo de vivências propriamente dito? E quanto ao tempo de maturação das reflexões? Com toda a riqueza da matéria-prima, quais são os instrumentos de trabalho para moldá-la? Papel e caneta sobre a escrivaninha, uma luminária para dissipar a penumbra, mais um corpo disposto a pensar... sobre o que escrever. Ainda que o computador esteja presente na vida cotidiana, muitas pessoas ainda escrevem dessa maneira. Uma palavra que desabrocha nos rincões mais recônditos, num impulso elétrico, assim como Nietzsche dizia, circula pelo corpo inteiro: da cabeça desce pelos braços, passa pelas mãos e flui pela ponta dos dedos até desembocar na caneta empunhada que suja a folha do papel com as cores de símbolos estranhamente desenhados e curiosamente decifráveis pelo testemunho atento do olhar: existo porque a palavra que está em mim está no mundo.
Em épocas passadas, mas num passado não tão remoto, as coisas aconteciam mais ou menos assim. Escritores acumulavam calhamaços de papel escrito em seus escritórios. Os manuscritos originais, como se costuma dizer, cheios de rastros de pensamento. E pensar que, num passado mais remoto, essa mesma prática era bem mais complicada, por razões óbvias. Avanços tecnológicos incipientes, carência na adequação de recursos materiais. Por exemplo, na Antiguidade era comum registrar as informações em blocos de pedra, tábuas ou papiro. Houve a adoção do papel e uma pena passou a ser usada para desenhar as palavras. O trabalho na escrivaninha era rudimentar, uma vez que não havia energia elétrica, logo a luz de uma vela era responsável por dissipar a penumbra e viabilizar a atividade de pensamento.
O surgimento da escrita foi algo notável para a civilização. A linguagem tornou-se exprimível e interpretável por meio de uma língua determinada em símbolos imagéticos. Os símbolos desenhados. As teorias da comunicação indicam que, antes da escrita, a oralidade era o meio de transmissão primordial que viabilizava as trocas comunicativas. Ou seja, a comunicação estaria toda alicerçada nos sons, e neste sentido, sob o ponto de vista da expressão corporal, oralidade e audição teriam um papel privilegiado na comunicação. É curioso notar que a possibilidade de sistematização alfabética da escrita representou uma nova maneira de expressar e explorar a linguagem. A comunicação passa a se estender para outras regiões do corpo, como os braços, as mãos e olhar, para expressar a língua por meio da escrita. Se há comunicação, é porque muitas regiões do corpo estão envolvidas na expressão da linguagem. Assim, surge a possibilidade de alicerçar a comunicação escrita num meio materialmente palpável, como blocos de pedra, tábuas ou papiro. Aliás, já havia comunicação antes da escrita? Os sons desordenadamente emitidos e os movimentos corporais poderiam ser caracterizados como um modo de comunicação? O que é comunicação? Os animais não humanos são capazes de se comunicar? Suspeitas à parte, o fato é que a escrita surgiu num dado momento.
No atual estado em que as coisas se encontram, talvez boa parte dessas questões não passe pela cabeça de muitas pessoas, afinal de contas as palavras sempre estiveram presentes na vida cotidiana de modos diversos. Entretanto, talvez essa noção seja um tanto quanto cômoda, uma vez que pensar sobre a origem da escrita e suas implicações ulteriores para a cultura pode ser um trabalho de fôlego, sobretudo quando alguém deseja articular uma compreensão mais ampla e aprofundada sobre o tema. O desenvolvimento da linguagem é uma conquista civilizacional. E quanto mais pessoas são alfabetizadas, na língua materna e eventualmente em outras línguas, tanto melhor para todo mundo. Por exemplo, uma pergunta parece ser especialmente oportuna agora. Qual foi o impacto que a escrita provocou na cultura então vigente quando ela surgiu na Antiguidade? O status quo da cultura oral estava estabelecido, e assim, tenho a impressão de que a novidade deve ter gerado as mais diversas reações. Porém, parece não fazer muito cabimento explorar uma pergunta dessa envergadura no espaço de um blog – e nem seria essa a minha intenção. Mas, ainda assim, trago deliberadamente a pergunta para que o leitor ou leitora seja estimulado com a proposta de uma possível reflexão.
A cultura ocidental tem dois autores cujas obras são consideradas fundamentais. Estamos falando de Homero e Hesíodo. Há controvérsias em torno da figura desses dois poetas. Há teorias que defendem a ideia de que esses autores existiram, mas há teorias que defendem a ideia de que diversos outros poetas foram unificados nas figuras de Homero e Hesíodo, ou seja, o trabalho coletivo de inúmeros poetas foi reunido e o resultado desses trabalhos foi creditado unicamente ao nome desses dois poetas. Homero é autor da Ilíada. E Hesíodo é autor de Os trabalhos e os dias. Os poemas homéricos eram transmitidos pela oralidade, assim como os poemas hesiódicos. Na obra de Homero, os poemas épicos relatam os feitos heroicos e figuras lendárias durante a Guerra de Troia, e neste sentido, temos o ideal da cultura aristocrática, onde a coragem era ressaltada como um valor capital. Na obra de Hesíodo, também há o relato de feitos heroicos, entretanto, Hesíodo narra esses feitos no âmbito da vida campesina, com o trabalho árduo no campo por meio de pessoas que cultivavam penosamente a terra com o suor do rosto para garantir a manutenção da vida. Braços, mãos e corpos. Eis o valor e a importância do trabalho.
Ou seja, na Grécia Arcaica, temos uma cultura eminentemente oral. Os aedos viajavam por diferentes lugares e recitavam esses poemas. As pessoas ouviam aqueles versos e todo um imaginário foi sendo fecundado – é importante notar que, conforme a própria civilização torna-se culturalmente diversa, muitas daquelas noções passaram a ser problematizadas. Originalmente, o poema é um tipo de expressão que privilegia a oralidade, pois toda a sua estrutura métrica, as sílabas poéticas e todo o esquema rítmico de versificação e entonação oral teriam como objetivo facilitar a memorização dos versos e provocar um efeito sonoro agradável aos ouvidos. Isto é, o trabalho dos poetas tem tudo a ver com um trabalho de memória. As habilidades em torno da memória eram habilidades extremamente valiosas, uma vez que ser capaz de se recordar de uma infinidade de versos era uma tarefa bastante complexa. E não menos complexa eram as habilidades em torno da recitação adequada daqueles poemas, com todo o trabalho de expressão oral envolvido.
Assim, esse tipo de cultura passou a ser transmitido ao longo de gerações. As próprias comunidades e os mais diferentes tipos de sociabilidade passaram a se organizar em torno dessa noção. E com o surgimento da pólis, temos as condições favoráveis para o florescimento do pensamento filosófico, histórico, científico, além da literatura, arquitetura e da própria Democracia. É nesse ambiente que a escrita começa a se propagar. Mas não pense que a adoção da escrita foi um acontecimento sem maiores repercussões. Muito pelo contrário! Adotar a escrita representava naquele momento uma mudança profunda na maneira de se comunicar ou até mesmo de organizar a sociabilidade. Tendo em vista que as pessoas estavam acostumadas a transmitir o legado cultural por meio da oralidade, então quais seriam as possíveis implicações para a cultura com a adoção da escrita? Se os poetas tiveram um papel relevante na tradição oral, o que poderia acontecer com eles com o surgimento da escrita? Se um poeta usasse a memória para transmitir os versos, logo ela exercia um papel central nessas práticas, então quais seriam os possíveis impactos para a memória com a adoção da escrita?
É curioso notar, por exemplo, a posição de Platão à época. Segundo o filósofo, a adoção da escrita poderia gerar sérias implicações para a cultura. Platão considerava que o texto escrito poderia ser uma fonte de infinitas controvérsias. Diferentemente de uma recitação oral, onde é necessário haver a presença de uma pessoa para recitar um poema, as palavras no papel poderiam circular livremente, sem haver a necessidade da presença de uma pessoa, uma vez que a existência do texto passaria a ser um evento autônomo e independente. Ou seja, com a adoção da escrita, autor e texto poderiam existir de maneira autônoma e independente, sem que ambos estivessem necessariamente presentes para que a mensagem se tornasse inteligível. Além disso, um outro problema levantado por Platão considerava a interpretação. Como um autor poderia explicar as suas próprias ideias com o leitor tendo acesso direto ao texto sem haver a necessidade de sua presença? Uma interpretação poderia estar equivocada, ou ainda, um leitor poderia ter dúvidas. Não bastasse isso, Platão considerava que o texto escrito poderia representar um impacto para o pensamento, pois se as palavras fossem escritas, não haveria mais a necessidade de recorrer à memória, ou ao próprio pensamento, para transmitir a comunicação. Tudo ficaria registrado em outro lugar. Isto é, haveria o declínio do uso da memória e do pensamento, e isso poderia representar um sério problema. Algumas dessas impressões estão presentes em Textos básicos de linguagem de Platão a Foucault.
Platão introduziu a problemática em torno da sociedade letrada. Adotar as letras como meio de expressão, promoção da cultura e manutenção das instituições implica difundir e ensinar a aquisição dessas habilidades entre as pessoas. A escrita foi adotada, e as objeções levantadas por aquele filósofo foram importantes no sentido de problematizar e estimular o debate sobre aquilo que representou uma mudança cultural profunda na Antiguidade. Muitas obras foram escritas e graças à adoção dessa prática podemos ter acesso ao teor de certos textos com valor inestimável. Registrar um texto por meio de palavras tem a vantagem de poder legá-lo à posteridade. Uma obra literária pode romper a barreira do efêmero para tornar-se parte do conjunto de um patrimônio cultural. Hoje, temos uma variedade incrível de livros. Os assuntos e os títulos são diversos. E, além disso, podemos ter um convívio muito gostoso com os clássicos escritos por autores e autoras de outras épocas. Mas não pense que não houve eventos traumáticos envolvendo a escrita ao longo da história. Por exemplo, como avaliar tudo o que foi perdido com o incêndio da Biblioteca de Alexandria, momento em que os textos com teor inestimável para a humanidade arderam em chamas? Fahrenheit 451? Não bastasse isso, ainda na Antiguidade, como mensurar as implicações decorrentes do fechamento oficial das escolas de filosofia para o livre curso do pensamento?
Desse modo, é importante considerar o papel que os livros e a escrita exercem para a promoção dos valores civilizacionais. Diferentes gêneros textuais, diferentes autores e autoras e diferentes estilos. Uns dizem que encontramos em cada um desses elementos um bom pretexto para nos olharmos diante do espelho. Outros dizem que encontramos em cada um desses elementos um bom pretexto para conhecer outras personalidades. Schopenhauer diria que o estilo é a expressão da própria personalidade. Assim, a experiência de leitura pode ser inquietante, provocativa, zombeteira, edificante, subversiva ou mesmo tranquila. Há quem diga que bons autores são aqueles que conseguem colocar em movimento as paixões. Cada camada de leitura, um novo afeto, novas impressões. Há livros que conseguem deixar o leitor ou leitora com os olhos marejados, com um nó na garganta, como no caso de Os miseráveis, de Victor Hugo. Mas há livros que conseguem levar o leitor ou leitora para um lugar ingenuamente terno, mas, ao mesmo tempo, sem deixar de lado a potência da mensagem, como no caso de O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry. E não há como deixar de notar nos textos filosóficos o trabalho de pensamento quando alguém se propõe a levá-lo ao limite.
Neste sentido, os livros podem ser uma fonte de reflexão muito fecunda para a promoção de atos de benevolência. Essa virtude social anda de mãos dadas com os livros. A benevolência, por exemplo, exerce um papel notável na filosofia de David Hume. Podemos considerar a benevolência como uma espécie de cimento que concretiza o vínculo entre as boas ações. Hume estudou na França, e além disso, foi amigo dos philosophes, entre os quais, Denis Diderot – juntamente com D’Alembert, Diderot foi o editor responsável por um dos maiores empreendimentos editorais do Séc. XVIII, a Encyclopédie. O filósofo escocês sempre foi muito bem acolhido todas as vezes em que esteve em território francês, e isso é um forte indicativo de que Hume praticava e tinha um grande apreço pela sociabilidade, ou seja, um traço concreto da benevolência. É importante ressaltar que Hume foi um filósofo simplesmente apaixonado pela literatura. Além de filosofia, Hume devorava outros gêneros, como história, ensaios e os mais diversos temas. Ele foi um verdadeiro frequentador das belas letras, sobretudo dos clássicos latinos. Num dado momento de sua vida, Hume chegou ainda a ser bibliotecário, o que viabilizou o acesso a uma infinidade de livros. A paixão pelos livros nutria as suas reflexões e podemos perceber isso quando lemos os seus textos. Assim, a paixão de Hume pelas belas letras pode servir como um incentivo para que o leitor ou leitora do blog trilhe os seus próprios caminhos pelas mais diversas páginas de um livro.
Reservar algum momento do dia para cultivar o hábito da leitura pode ser uma atitude transformadora. Ler é edificante. Ou não, dependendo do ponto de vista! Alimentar o pensamento com novas ideias pode ser desafiador. Por meio das leituras, é possível aperfeiçoar outra virtude social extremamente benéfica para o bom convívio social, uma vez que o contato com as palavras pode aperfeiçoar o gênero humano. É aqui que entra em cena a simpatia, um outro componente filosófico presente em Hume. Para que haja a benevolência, é necessário reconhecer a importância e o valor da figura do gênero humano. Seres humanos têm sentimentos e podem sofrer. A simpatia pode ser considerada como um vetor para o direcionamento da benevolência. Se as ações benevolentes podem ser consideradas uma espécie de cimento que concretiza o vínculo entre as boas ações é porque existe um ser humano que será perpassado pela benevolência durante a sua propagação. A simpatia nasce quando consideramos a possibilidade de nos colocarmos no lugar de outrem, ou seja, quando estamos propensos a nos sensibilizar com as dores, angústias e o sofrimento alheios. Ou seja, quando literalmente nos colocamos na pele de outra pessoa. Mas a simpatia não está restrita simplesmente ao âmbito dos seres humanos; ela também se estende aos outros animais e formas de vida. Eles também têm sensibilidade, sofrem, pensam, ainda que de maneira distinta da nossa, e neste sentido, merecem respeito. Assim, não posso deixar de lembrar da simpatia que os cães, por exemplo, sentem em relação a tutores ou tutoras. É o caso do cocker spaniel Flush, personagem central da obra homônima de Virginia Woolf, que dava cambalhotas de felicidade quando via sua tutora. Sendo assim, por meio das leituras, afeiçoamo-nos com os mais diversos personagens. Como não se compadecer com a história de Fantine e Cosette? O que dizer da figura dos Thénardiers? E o que fizeram com Cosette? Depois que os “miolos secaram”, tamanha era a dedicação à leitura, em virtude do acesso a uma ampla biblioteca, como não se sentir tocado quando D. Quixote decidiu se tornar cavaleiro e sair pelo mundo em busca de aventuras com o seu companheiro Sancho Pança? Como não ficar perplexo com Os sofrimentos do jovem Werther? Por isso, aprendemos também a exercitar a gratidão pelos escritores e escritoras por terem sido capazes de imaginar histórias tão valiosas, além de, num ato de generosidade, terem partilhado cada uma delas conosco.
Sendo assim, quando o cultivo da simpatia nasce entre as pessoas, o ambiente torna-se propício para o cultivo de outra virtude social. Estamos falando da generosidade. Hume considera que, ao contrário de outros filósofos, como é o caso de Thomas Hobbes, os seres humanos não são unicamente egoístas. Além do egoísmo, ou seja, do amor próprio e da consideração de nossos próprios interesses, também somos altruístas, ou seja, consideramos o bem-estar e os interesses alheios. Em muitas de nossas relações cotidianas, ou até mesmo em nossas relações com os outros animais, agimos tendo em vista o bem-estar alheio. Por exemplo, quando estamos com um carrinho de compras na fila do supermercado e uma pessoa chega, com alguns poucos itens, e pergunta se não seria possível ceder o nosso lugar para que ela possa passar na frente. Obviamente, não seremos egoístas. Ou ainda, quando um gatinho de rua pula o muro de nossa casa e passa a conviver conosco em nosso quintal. Obviamente, acolheremos aquele animalzinho, alimentá-lo-emos, daremos água e carinho. Nesses dois exemplos, demonstramos como o altruísmo é capaz de promover ações desinteressadas. No primeiro caso, ele foi capaz de produzir um ato de gentileza. No segundo caso, ele foi capaz de produzir um ato de acolhida. Por outro lado, além das relações entre seres humanos e animais, também é necessário considerar a relação entre seres humanos e natureza. E essa relação é sobretudo filosófica. Os nossos interesses particulares também devem levar em consideração a natureza. Quando as ações humanas fazem intervenções na natureza, os fenômenos naturais tendem a se intensificar, e assim, o que já era dotado de força, tende a se fortalecer ainda mais. Neste sentido, se levarmos em conta apenas os interesses humanos em detrimento dos interesses da natureza haverá um desequilíbrio na balança do egoísmo vs. generosidade. Assim, para haver o equilíbrio, também é necessário considerar a natureza para que ela não se volte contra os seres humanos, animais e outras formas de vida.
Entretanto, passamos por momentos de dificuldade ou dolorosos, e em momentos como esses, o convívio com os livros e todos os modos possíveis de expressão artística, ou até mesmo com amigos, tornam-se inestimáveis. Com eles, podemos encontrar uma fonte importante para o cultivo de novas reflexões. Nas belas letras e nas artes, poderemos visitar autores, autoras e artistas para que os nossos pensamentos sempre estejam em movimento. A literatura, as belas letras e as artes em geral desempenham um papel considerável no aperfeiçoamento do gênero humano, assim como foi dito, suavizando os seus traços. Assim, pensar juntamente com as outras pessoas, sobretudo com as pessoas que têm lições importantes para partilhar, torna a vida mais leve, e a sensação que temos é como se estivéssemos vivendo um grande passa tempo em detrimento dos golpes imprevisíveis da fortuna. A tradição filosófica ocidental, por exemplo, tem mais de 2.500 anos e certamente muitas questões e temas com os quais filósofos e filósofas vêm pensando podem ser uma fonte bastante considerável de ensinamentos. Em especial, a “escola” cética, que tem como prática a suspensão do juízo, cujo fim é a tranquilidade, sempre mantendo sob suspeita as alegações dogmáticas. Nas palavras, em especial, podemos encontrar a seiva vital para nutrir as nossas ideias. E, assim, o hábito da leitura pode se tornar uma experiência transformadora. A arte da conversação, por outro lado, desempenha o papel promotor das mais diversas trocas intersubjetivas. É o que ocorre quando terminamos de ler um livro e passamos a partilhar as impressões de nossa leitura com as outras pessoas.
Caro leitor ou leitora, gostaria de concluir com um alerta. Observe que os argumentos expostos ao longo deste ensaio não têm nenhuma pretensão de revelar a natureza das coisas. Como disse em outras oportunidades, a argumentação cética tem uma pretensão bem mais modesta em relação ao empreendimento filosófico. Por exemplo, quando vamos ao consultório médico é comum haver a solicitação de certos exames para fazer o acompanhamento rotineiro e saber como anda o estado de saúde. Quando retornamos, já com os exames em mãos, ficamos sabendo dos resultados. Então, dependendo dos tipos de exame e dependendo dos resultados, eles poderão indicar certas carências, como a falta de certas vitaminas, momento em que provavelmente receberemos uma prescrição indicando a necessidade de suplementação para repô-las. De maneira análoga, a falta do hábito da leitura apresenta indícios de longa data indicando a manifestação de certas carências, o que é possível observar por meio de certos “sintomas” aparentes, e por isso, a recomendação da leitura teria o simples objetivo de 1) suprir algumas carências em decorrência da ausência do hábito da leitura – obviamente para quem não cultiva o hábito –; e 2) reforçar o incentivo para quem já cultiva o hábito, tendo em vista que, por meio das palavras, pela diversidade de leituras e pela visitação a diferentes autores e autoras poderemos encontrar uma suplementação balanceada e adequada para a boa manutenção das necessidades intelectuais.
Muito
obrigado pela atenção e espero que você tenha apreciado a leitura. Até a
próxima publicação!
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Sobre a pintura:
Vincent van Gogh (1853-1890)
Os comedores de batata
Óleo sobre tela sobre painel
KM 109.982
Kröller Müller Museum
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