Eis mais uma publicação em nosso blog. Sejam bem-vindo(a)s
mais uma vez! Desde o primeiro artigo, estamos percorrendo juntos algumas das
trilhas de nosso périplo tradutório. O ponto de partida teve um início
determinado em A relação do tradutor e seus pares. Em
seguida, tivemos a oportunidade de fazer uma passagem por Alguém disse que a tradução é….
Posteriormente, o nosso itinerário desembarcou na pergunta: Palavras: há um significado intrínseco? A
pergunta, mais que uma reflexão, propõe uma provocação. Há uma certa inclinação
em atribuir um significado intrínseco às palavras. Entretanto, quando estamos
traduzindo um texto, percebemos que as palavras são usadas de modos diversos em
contextos diferentes. Quando o uso das palavras transita de um contexto para o
outro, percebemos que é possível haver mudança no significado de uma sentença:
uma cadeira pode ser usada para trabalhar, para relaxar na sala principal ou
para tocar piano. Deste modo, repensar a existência do suposto significado
intrínseco das palavras pode ser uma atividade salutar para a prática da
tradução. Novas nuances semânticas podem ganhar existência. Mas, se dermos um
passo adiante, a reflexão pode ser um pouco mais abrangente: o que é
uma palavra? Obviamente, uma possível resposta dependeria do objeto de
reflexão. Para as línguas ocidentais a pergunta pode fazer algum sentido;
entretanto, para as línguas originadas a partir de outras regiões e culturas,
talvez ela não faça sentido algum. Na publicação de hoje, gostaria de discorrer
algumas linhas sobre duas etapas da tradução: a uniformidade terminológica e a
investigação terminológica.
No mundo da tradução técnica e comercial, quando o
profissional da palavra é requisitado para trabalhar em um projeto, por
exemplo, nos pares linguísticos inglês>português ou francês>português,
ele recebe uma série de instruções, diretrizes, materiais de referência ou
mesmo o guia de estilo juntamente com o projeto de tradução. Entre as
instruções gerais, é muito comum encontrarmos a orientação “manter a
uniformidade terminológica” – sobretudo nos projetos com uma grande quantidade
de palavras. Geralmente, um projeto de tradução é quantificado em número de
palavras, e quanto maior o número de palavras, maior será o trabalho dedicado
para a conclusão do projeto. Mas, o que seria “uniformidade terminológica” e
como associá-la ao projeto?
A uniformidade terminológica, entre outras coisas,
tem o objetivo de tornar o projeto consistente. E a partir do momento em que um
projeto é consistente ele tem qualidade. Um projeto de tradução pode variar em
tamanho: desde um projeto com uma única palavra até um projeto com milhares de
palavras – ou mesmo milhões de palavras. A título de ilustração, pensemos em um
projeto na área de TI com 90 mil palavras. Quem já teve a oportunidade de
traduzir na área sabe que há muitos desafios envolvidos. No meu ponto de vista,
um dos maiores desafios seria encontrar a tradução adequada para os inúmeros
termos técnicos e nome de produtos para a língua de chegada. Um projeto de 90
mil palavras não é um projeto pequeno e seria necessário dedicar um tempo
considerável para concluir a tradução.
Na indústria da tradução existem recursos
tecnológicos extremamente úteis para auxiliar a vida do profissional da
palavra. Como em muitas outras áreas, o computador tornou-se indispensável para
a rotina de trabalho. Ele agiliza e aumenta a produtividade. Mas, existem
recursos especificamente voltados para o mundo da tradução. Refiro-me às
ferramentas de tradução assistida por computador (em inglês, CAT tools).
Existem inúmeras dessas ferramentas, e já tive a oportunidade de trabalhar com
algumas delas. Destaco as minhas experiências positivas com Trados
Studio, memoQ, Smartcat, Wordbee, Memsource
Cloud, Passolo, XTM, Lingotek, Wordfast Pro
e Smartling.
Para entendermos como a uniformidade terminológica é
associada a um projeto, precisamos entender brevemente como funcionam as
ferramentas de tradução. Imaginemos que o nosso projeto de TI com 90 mil
palavras possui 10 arquivos, em formato Word, cada um com nove mil
palavras. A língua de origem é o inglês e a de chegada é o português. Para que
o material possa ser traduzido pelo profissional da palavra a partir da
ferramenta de tradução, é necessário criar o projeto nela. No momento da
criação do projeto, indicamos a língua de partida e a língua de chegada. Depois
indicamos os arquivos a serem traduzidos e, na sequência, indicamos a memória
de tradução e o glossário do projeto.
Geralmente, tudo isso é enviado para o profissional
da palavra quando o gerente de projetos atribui a tarefa. A ferramenta de
tradução, depois da criação do projeto, divide todo o texto a ser traduzido em
segmentos. E, na própria ferramenta de tradução, conforme a tradução avança,
surgem as correspondências a partir da memória de tradução. Quando houver as
correspondências – obviamente, quando não houver, quem faz a tradução é o
próprio tradutor. Por outro lado, conforme os termos técnicos são identificados
no texto dos segmentos de origem, o glossário propõe a tradução específica.
Imagine o termo Cloud Environment. Ele pode ser traduzido para
português como “ambiente em nuvem”, “ambiente na nuvem”, “ambiente da nuvem” ou
“ambiente de nuvem”. Agora imagine que o termo aparecerá ao longo do projeto
muitas vezes. Qual termo escolher e como empregá-lo ao longo da tradução para
garantir a uniformidade terminológica? É exatamente aqui que entra o glossário.
Imagine que o glossário enviado pelo gerente de projetos propõe “ambiente na
nuvem”; então essa solução será exatamente empregada ao longo de todo o
projeto. Deste modo, com o auxílio de um glossário, acessível como um recurso
de uma das ferramentas de tradução, o profissional da palavra será capaz de
manter a uniformidade terminológica, garantir toda a consistência do projeto,
manter a sua qualidade e torná-lo inteligível.
Perceba que uma escolha foi feita a partir de quatro
possibilidades. Ou seja, num primeiro momento, o profissional da palavra faz a
tradução e propõe as soluções possíveis – “ambiente em nuvem”, “ambiente na
nuvem”, “ambiente da nuvem” ou “ambiente de nuvem”. As opções são aceitáveis e
igualmente possíveis, no entanto, “ambiente na nuvem” foi a escolha do cliente
e, assim, devemos respeitá-la. A partir da escolha do cliente a entrada no
glossário foi feita. Cloud Environment corresponde a ambiente
na nuvem. Contudo, para que a escolha fosse feita, num primeiro
momento, houve a necessidade de reconhecer a existência das quatro possibilidades terminológicas e, entre elas, uma opção tornou-se a mais
adequada de acordo com as necessidades do cliente. Mas, o leitor mais curioso
talvez esteja se perguntando: o que é um ambiente na nuvem? Permita-me a breve
digressão. Em linhas gerais, o ambiente na nuvem é um conceito amplamente
utilizado no mundo da tecnologia da informação. O ambiente na nuvem é
constituído por servidores interconectados por meio de uma infraestrutura de
rede alocados em um centro do processamento de dados que oferece serviços de
processamento de dados, alocação de recursos computacionais e software, entre
outras coisas. O fato desse ambiente ser acessível por meio de uma conexão
remota, geralmente pela Internet, acaba gerando a ideia da nuvem. Em suma, o
ambiente na nuvem nada mais é que um conjunto de servidores conectados em rede
em um centro de processamento de dados que oferecem serviços computacionais
remotamente acessíveis.
* * *
Quando o profissional da palavra recebe o projeto
para traduzir, vimos que também é comum receber a orientação “manter a
uniformidade terminológica”. O gerente de projetos envia todo o material de
tradução, entre os quais uma memória de tradução e um glossário. A construção
de um glossário envolve a criação de um repositório com inúmeros termos
técnicos da língua de origem para a língua de destino. E a construção desse
repositório é o resultado concreto do processo de tradução. Traduzir, por sua
vez, envolve, entre outras coisas, investigar para determinar a solução
terminológica mais adequada.
Em A relação do tradutor e seus pares fiz
uma analogia. Costumo comparar a atividade tradutória a uma aventura. Quando
estamos tendo dificuldade para determinar a tradução de um termo, o convívio
com as palavras fica tenso. Neste momento, precisamos mobilizar todo o nosso
aparato investigativo para encontrar a solução mais adequada. Neste sentido,
estamos falando em investigação terminológica. Aqui vale recorrer aos mais
variados recursos linguísticos: dicionários bilingues convencionais,
dicionários de expressões idiomáticas, bases terminológicas, imagens
ilustrativas, vídeos, animações, materiais de referência, etc. Observe que,
neste caso, recorremos a inúmeras fontes de pesquisa sempre tendo em vista o
resultado mais satisfatório em termos linguísticos. Os meios de pesquisas são
variados, e eles podem ser online e offline, ou
seja, Internet ou gramáticas e dicionários de papel. E, quando boa parte desses
recursos são consultados sem que a tradução seja encontrada, surge a
possibilidade de recorrer ao gerente de projetos para que seja possível
solicitar mais informações sobre o termo em questão. Colocar em prática a
investigação terminológica pressupõe que o nosso problema será resolvido de um
modo racional – e de modo satisfatório para o cliente. A aventura é instigante,
sobretudo quando o tempo pressiona.
Perceba que, ao desencadearmos a investigação
terminológica, mobilizamos o nosso pensamento em busca de alguma coisa. Segundo
a etimologia, “investigar” vem do latim investigare, ou seja,
seguir os vestígios. Contudo, na antiguidade, e mais
especificamente no período helenista, havia uma “escola” de pensamento grega
que conferia à investigação (em grego zétesis) um lugar de destaque. Estamos
falando do ceticismo. Para os céticos antigos (skeptikos), havia três tipos de
filosofia: a dogmática, a acadêmica e a cética. Ainda de acordo com eles, a
filosofia dogmática caracterizava-se por ter pretensamente encontrado a verdade
– como era o caso das escolas filosóficas de Aristóteles, dos estoicos e
outras. Por outro lado, a filosofia acadêmica julgava ser impossível descobrir
a verdade – como era o caso para Clitômaco, Carnéades e outros acadêmicos. Por
fim, os céticos prosseguiam com a investigação. Sabemos disso graças ao relato
de Sexto Empírico (séc. II d.C. – a data exata e o local de nascimento são
desconhecidos), legado à história da filosofia, por meio das Hipotiposes
Pirrônicas.
O profissional da palavra encontra inúmeros desafios
diante do texto em língua estrangeira. O texto é articulado por meio de uma
variedade de palavras em sentenças. Ora, para que a investigação possa
acontecer, é necessário haver um objeto de investigação. A variedade de
palavras em sentenças constitui o objeto de investigação. Portanto, a
investigação pode ser uma atividade contínua e ininterrupta. Por outro lado, se
levarmos em conta que as palavras podem não ter um significado intrínseco, a
investigação pela inteligibilidade do sentido também pode ser uma atividade
igualmente contínua e ininterrupta. No nosso exemplo, utilizamos o termo Cloud
Environment. A partir do momento em que o termo foi apresentado para
tradução, o pensamento desencadeou a investigação terminológica em busca da
melhor solução tradutória. No caso, chegamos nas soluções propostas: “ambiente
em nuvem”, “ambiente na nuvem”, “ambiente da nuvem” ou “ambiente de nuvem”.
Todas as soluções são possíveis. Porém, a solução escolhida com um sentido
inteligível foi inserida no glossário: “ambiente na nuvem”.
A linguagem pode ser um meio poderoso para a
expressão do pensamento. Por meio das palavras podemos expressar as ideias. No
caso de um manual de instruções, é possível organizar uma série de informações
e orientações para a utilização apropriada de um dispositivo eletrônico, por
exemplo. Ocorre que nem sempre as palavras são capazes de exprimir
integralmente o que se pensa. Tenho a impressão de que as coisas se tornam
ainda mais complexas quando nos referimos aos afetos, sentimentos e paixões.
Como exprimir todo este “universo” em palavras? Por outro lado, somos seres
humanos e enfrentamos diversas dificuldades para viver no dia a dia. Seria a
linguagem um aparato cognitivo voltado para a sobrevivência?
Além da investigação, a prática tradutória envolve
outras habilidades intelectuais. A partir do momento em que reconhecemos a
existência da multiplicidade das palavras, podemos reconhecer a possibilidade
da existência de sentidos diversos. Para as línguas ocidentais, faz sentido
falar em palavras, entretanto, isso pode não fazer sentido algum para as
línguas de outras culturas, assim como foi dito acima. Por outro lado, disse há
pouco que o texto é articulado por meio de uma variedade de palavras em sentenças.
O conjunto de sentenças forma argumentos, e o conjunto de argumentos forma
parágrafos. Para que possamos torná-los inteligíveis recorremos ao
entendimento. Então, uma interpretação pode ser construída. Entretanto, nem
sempre a interpretação de um texto é correta, e quando ela é submetida ao exame
crítico da análise atenta e pormenorizada, a interpretação demonstra ser
equivocada ou incoerente. Ou seja, uma interpretação pode ser um modo possível
de entender um texto, mas ela é passível ao debate e apreciação crítica. E quem
lê nunca está só.
Quando estamos no âmbito da literatura, ou mesmo da
filosofia, a interpretação de um texto pode ser tão variada quanto o número de
leitores. Na literatura, estamos falando de arte e o seu produto, em grade
medida, tem a ver com a ficção. Aqui, a imaginação encontra um poderoso meio de
expressão, e as palavras ganham uma coloração e contorno fantásticos. Por outro
lado, na filosofia, estamos falando de racionalidade e o seu produto, em grande
medida, tem a ver com a argumentação. Aqui, a razão encontra um terreno fértil
para expressar o pensamento, e as palavras ganham uma coloração e contorno
áridos. Contudo, a palavra é o meio comum de expressão tanto para a literatura
quanto para a filosofia.
Segundo o relato de Sexto Empírico, pessoas
talentosas, diante das anomalias presentes nas coisas da vida ordinária,
propuseram-se a investigar. Assim, motivadas pela ideia de que seria possível
determinar o que era verdadeiro e o que era falso, elas poderiam atingir a
tranquilidade (ataraxia). Deste modo, a partir do momento em que eram capazes
de submeter ao escrutínio o que se lhes apresentava em uma determinada
circunstância, constatou-se que, para cada ponto de vista, era possível
formular um outro ponto de vista com força igualmente persuasiva. A linguagem,
por sua vez, apresenta uma infinidade de desafios durante a rotina de trabalho.
O texto escrito do idioma de partida, quando traduzido para o idioma de
chegada, deve possuir certas qualidades: aqui temos dois textos – o original e
a tradução (ambos inteligíveis e com força igualmente persuasiva). Portanto, o
texto traduzido pode atender às mais variadas necessidades linguísticas do
público-alvo. Os meus pares linguísticos são ingles>português e francês>português.
Mas, se considerarmos que as palavras nem sempre são capazes de exprimir
integralmente o que se pensa, ou mesmo os afetos, sentimentos e paixões, volto
a formular a pergunta: o que é uma palavra?
Muito obrigado pela atenção e espero que você tenha
apreciado a leitura. Até a próxima publicação!
Sobre a pintura:
Claude Monet (1840-1926)
Impression, soleil levant
1872
Óleo sobre tela
Musée Marmottan Monet, Paris, França
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