Ulisses estava sentado na beira da praia naquela
manhã de domingo. Há algum tempo, observava o vai e vem das ondas. O clima era
muito agradável e a luz do sol irradiava em profusão por todos os lados. Em
movimentos de alternância encadeada, o calor do sol e a brisa fresca que vinha
do mar iam ao encontro de sua presença. Naquela paisagem, a manifestação da
natureza era evidente: pássaros entoavam cânticos exuberantes, a geografia
costeira, com as suas cores e formas matizadas, esculpiam em um único recorte
aquilo que os olhos conseguiam apreender, e no horizonte, uma linha divisória
bem traçada delineava muito claramente céu e mar. Não era impossível deixar de
observar também, de um lado, a instabilidade das pequenas embarcações flutuando
na água, e de outro, a estabilidade e constância imemoriáveis dos coqueiros
fincados na terra. Toda a ambientação e os seus mais variados elementos
coexistiam tranquilamente naquela paisagem. Era muito bom pisar em terra firme.
Entretanto, nem sempre as coisas foram assim.
Não era a primeira vez que Ulisses ia à praia, e
aquele local especificamente havia sido descoberto há pouco tempo – a costa
litorânea era imensa. Desde então, passou a visitá-lo com frequência, sobretudo
aos domingos pela manhã. As manhãs de domingo na praia eram especialmente
apropriadas para o cultivo do pensamento e das mais variadas vivências
intelectuais. O ambiente iluminado e a natureza generosamente abundante eram
particularmente convidativos para essa prática. Naquele ambiente, os mais
diversos pensamentos passavam pela cabeça de Ulisses e cada um deles nascia
espontaneamente. Não havia mais nada que impedisse isso. As memórias de viagem
também estavam presentes em suas vivências. Então, alguns aspectos do périplo
de retorno a Ítaca passaram a ocupar os seus pensamentos.
Aquela viagem havia sido permeada por muitas
dificuldades. Ao deixar Troia, Ulisses vagou juntamente com os seus
companheiros pelos caminhos mais improváveis. Navegar por águas tormentosas e
enfrentar as circunstâncias mais adversas passou a ser algo habitual na vida de
nosso personagem ao longo de muitos anos. O paradoxo fazia-se em onipresença. A
cada vez que a embarcação ganhava o mar e penetrava os rincões mais recônditos,
Ulisses tinha a sensação de que, em vez de estar seguindo o seu caminho, ele e
os seus companheiros pareciam estar cada vez mais perdidos. Entretanto, a
presença de seus companheiros sempre foi um elemento decisivo para que Ulisses
mantivesse a confiança de que aquela situação poderia ser enfrentada com êxito.
Nos mais variados trechos de viagem, Ulisses
passava boa parte do tempo conversando com os seus companheiros. Os assuntos
eram os mais variados, uma vez que o nosso personagem tinha muito apreço pela
arte da conversação. Era assim que os laços de amizade eram fortalecidos entre
eles. Ulisses e os seus companheiros não deixavam de trocar as mais variadas
impressões sobre a vida. Certamente trocavam considerações sobre as
dificuldades e davam força um para o outro para que se fortalecessem. A estação
de meia idade era oportuna para isso. Com o alvorecer da maturidade, os
viajantes podiam fazer um balanço retrospectivo em relação às experiências
pregressas e ainda sonhar com tudo o que poderia acontecer ao longo dos anos
que poderiam ter pela frente. Então, o vínculo entre Ulisses e os seus
companheiros representava um elo cooperativo para que pudessem lidar com a
força da natureza, e se conseguissem sair vivos, chegar em Ítaca.
Houve momentos críticos, sem dúvida. Por exemplo,
Ulisses ficava imaginando como era possível uma embarcação precária ter sido
capaz de enfrentar a agitação das águas e toda a revolta do mar nos trechos
mais tormentosos. As noites de escuridão à deriva e o período que ficavam sem
água e comida eram praticamente insuportáveis. No entanto, Ítaca sempre esteve
em seu horizonte e seria dali que Ulisses tiraria as suas forças para continuar
viajando rumo ao lar. Por outro lado, o nosso personagem fazia algumas comparações.
Por exemplo, para ter a real noção da situação em que se encontrava, Ulisses
comparava a viagem terrestre com a marítima. Na viagem terrestre, era possível
garantir a orientação espacial por meio dos caminhos. Havia uma rota traçada em
terra firme na qual era possível caminhar. Durante a caminhada, havia a
sensação de avanço espacial, ou seja, o deslocamento da origem para o destino
era evidente. Entretanto, isso não acontecia na viagem marítima! Ulisses e os
seus companheiros estavam completamente jogados e desamparados na instabilidade
e inconstância marítimas. Não havia um caminho delineado no qual era possível
avançar. Não era possível visualizar um caminho. Os viajantes estavam
completamente desorientados e avançavam de acordo com o capricho do sopro dos
ventos. Foi assim que chegaram nos lugares mais inesperados.
Ulisses não se esquece, particularmente, de uma
noite chuvosa e cheia de relâmpagos. A escuridão quase se impôs diante de seus
olhos. Ulisses e os seus companheiros, entretanto, seguiram adiante e
contornaram a situação adversa com maestria. Eles acabariam chegando em terra
firme, entretanto a sensação de segurança era fugaz, uma vez que havia muito
trajeto pela frente. Por outro lado, Ulisses nunca deixou de manter Ítaca em
seu horizonte.
Uma outra memória que passou pela cabeça de Ulisses
era notadamente inquietante. Havia um trecho de viagem extremamente perigoso.
Ulisses já havia sido alertado em relação ao perigo do canto da sereia. Naquela
época, havia um mito segundo o qual as sereias eram uma ameaçava para os
marinheiros. Quando entoavam cânticos, elas atraiam sedutoramente os
navegantes. Se caíssem em seus encantos, os marinheiros perderiam a razão, a
consciência e o senso de realidade. Então, eles eram simplesmente destruídos. Diante
do perigo iminente, Ulisses organizou todo o seu aparato de defesa para que
pudesse proteger a si e aos seus companheiros. Por outro lado, o nosso
personagem pensava como eram desafortunados os navegantes que não eram capazes
de mobilizar o aparato de defesa para que pudessem se proteger diante do
perigo. Mas o mais triste era que esses navegantes nem tinham um aparato de
defesa!
Segundo as orientações que havia recebido, Ulisses
e os seus companheiros deveriam colocar cera doce nos dois ouvidos para impedir
que as notas melodiosas, o tom supostamente adequado e o timbre ilusoriamente
agradável atingissem os seus ouvidos. O canto vocal parece ser um fenômeno
artístico extremamente agradável aos ouvidos, contudo, o canto da sereia era
uma manifestação sedutoramente perigosa cuja finalidade era simplesmente
aniquilar a vida dos marinheiros. Ulisses e os seus companheiros, atentos e vigilantes,
prepararam o aparato de defesa e cruzaram o trecho incólumes, ainda que
tivessem recebido notícias de que outros navegantes não haviam sobrevivido.
Depois da experiência vivenciada por Ulisses e os seus companheiros, cada um
deles pôde se reconciliar com a humanidade que habitava neles.
Ulisses ainda estava sentado na praia e o seu
pensamento caminhava livremente. Então, ele fez uma ponderação. Navegar por
águas tormentosas e enfrentar as circunstâncias mais adversas seria algo
habitual até certo momento de sua vida. Neste momento, depois de tanto navegar,
e passar pelas situações mais inacreditáveis, o nosso personagem lembrou do
momento em que chegou em casa e o estado no qual ela se encontrava. O cenário
era desolador. Os seus entes queridos haviam passado por situações inimagináveis
no período de sua ausência. Era doloroso constatar aquilo. Entretanto, ao se
livrar dos forasteiros que haviam invadido a sua casa, também era extremamente
reconfortante lembrar do momento de seu reencontro com Telêmaco e Penélope
depois de tantos anos:
– E pensar que, depois de todo esse tempo, eles
chegaram a imaginar que não me encontrariam mais e que eu estaria morto.
Mesmo com as feições alteradas em virtude do
disfarce que precisou usar para entrar em casa, Ulisses nunca se esqueceu que
Argos, o seu cão, foi o único ser capaz de reconhecê-lo quando retornou para
casa depois da longa jornada. O nosso personagem tinha um apego muito grande
pelo animalzinho e foi extremamente emocionante tê-lo encontrado novamente. Não
foi fácil chegar em casa depois de tanto tempo. Com o uso do disfarce, os
forasteiros não foram capazes de reconhecer Ulisses. De fato, havia passado muito
tempo, e Ulisses, transformado pela jornada, já não era a mesma pessoa. O nosso
personagem também não deixaria de lembrar de seus companheiros, que ficaram ao
longo do caminho, impossibilitados de chegar em Ítaca juntamente com Ulisses.
Então, depois de algumas horas ali sentado,
contemplando a paisagem, sentindo a brisa do mar e o sol na pele, o nosso
personagem resolveu se levantar, dar uma volta e inflar os pulmões com o ar
litorâneo. A praia é um local que traz muitas lembranças e perceber todas
aquelas impressões sensoriais fazia com que Ulisses se sentisse cada vez mais
vivo. Agora, a breve caminhada pela orla, em terra firme, levá-lo-ia para o
restaurante de praia para que pudesse encontrar os amigos e almoçar
tranquilamente juntos.
Sobre a pintura:
Vincent van Gogh (1853 – 1890)
Vista do mar em
Scheveningen
Haia, agosto de 1882
óleo sobre papel sobre tela
Van Gogh Museum, Amsterdam (State of the Netherlands, bequest of A.E. Ribbius Peletier)
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