Friday, April 26, 2024

Uma história de um livreto com as suas páginas já amareladas

 






Qual é o sentido daquelas preferências gerais pela vida na cidade ou pela vida no campo, por uma vida de ação ou por uma vida de prazer,  pela vida reclusa ou pela vida em sociedade; quando, além das inclinações diferentes de homens diferentes, a experiência de todos pode nos convencer de que cada uma dessas formas de viver pode ser, a seu modo, agradável e quando a variedade mesma ou a sua combinação judiciosa estão entre os fatores que mais contribuem para tornar todas elas agradáveis?

O cético, David Hume

 

 

Estava folheando há pouco um livreto com as “suas páginas já amareladas” quando algumas memórias se tornaram vivazes. Passo a compartilhá-las com vocês.

Aquele era mais um estudante universitário que acabara de entrar na faculdade de filosofia, quase no final da primeira década dos anos 2000, em uma universidade paulistana. Com um repertório filosófico muito precário, o único livro de filosofia que havia sido lido, pouco antes de começar a graduação, era A República de Platão. Encontrado em uma livraria do ABC paulista, o livro tinha capa branca, título em vermelho vinho e uma figura em cinza esmaecido que representava a fachada do Partenon. Um comentário suscinto no rodapé da página estimulou a curiosidade: uma obra fundamental na trajetória do pensamento filosófico. Então, ainda naquela livraria, o livro foi pego nas mãos, algumas de suas páginas foram folheadas e foi decidido que ele deveria ser comprado. Na sequência, houve empolgação, o livro foi levado para casa e não se via a hora de que aquela leitura começasse. Alguns dias depois, a leitura foi completamente concluída. E foi por ali que a jornada começou, e esse livro está guardado até hoje.

Foi por ali que a jornada começou, mas não seria por ali que os meus passos iriam avançar. Sim, foi essa a conclusão a que cheguei, já na graduação, após a leitura dos primeiros textos filosóficos e depois de algumas aulas assistidas. Um de meus professores que ministrava boa parte das aulas em Platão e filosofia antiga, o Prof. Paulo Henrique, era uma pessoa incrível e extremamente generosa. As suas aulas foram muito importantes para que fosse possível construir uma noção e compreender um pouco melhor alguns aspectos do platonismo. Entretanto, desde o primeiro ano da graduação, adotei uma postura muito prudente em relação à recepção das ideias de filósofos e filósofas com os quais o então estudante, no caso eu, teria contato. Segundo a minha avaliação, seria necessário haver mais tempo de estudo e aprofundamento nas doutrinas ao longo da história da filosofia para que uma posição filosófica pudesse ser firmada. Portanto, conclui que não seria platônico.

Com o avanço das aulas, muito debate e troca de ideias entre colegas, acabaria descobrindo que o meu repertório filosófico, até então precário, seria uma virtude. Mas, como assim? Não cheguei na universidade munido de leituras, e neste sentido, pude construir pouco a pouco as minhas próprias noções conforme absorvia as aulas de professores e professoras muito mais experientes que dedicaram – e ainda dedicam – muitos anos de suas vidas ao estudo do pensamento. Ou seja, não entrei na universidade com uma noção pré-concebida do que seria a filosofia – aliás, descobriríamos ao longo das aulas que a pergunta “o que é filosofia?” é considerada por alguns pensadores como uma das perguntas filosoficamente mais desconcertantes. Muitas vezes, a interpretação de um texto filosófico pode estar equivocada. Além disso, ela pode ser fruto de concepções tradicionais mal fundamentadas. Não cheguei na universidade munido dessas leituras, mas sempre tive uma disponibilidade intelectual que considero ser muito benéfica para o exercício do pensamento. Sempre gostei de conversar sobre os mais variados assuntos. E sempre nutri muita curiosidade diante do desconhecido. Assim, começar a trilhar os caminhos filosóficos por meio da orientação de professores especialistas acabou sendo formidável.

Desde a adolescência sempre tive o pensamento muito inquieto. Já na universidade, descobrir o que os outros filósofos e filósofas pensavam sobre os mais variados assuntos era uma maneira de compreender aos poucos a humanidade que também habitava em mim. Assim, descobria que as minhas inquietações eram fruto de reflexão, e neste sentido, faziam parte do curso de meu amadurecimento. Em determinado momento, na graduação, tive a impressão de que um avanço significativo poderia ser feito no momento em que estabeleci contato com os textos do Prof. Porchat em seu Rumo ao Ceticismo, por meio das aulas do Prof. Piva, que seria o meu orientador na graduação, uma figura de generosidade ímpar. Então, resolvi mudar o curso de minhas investigações e direcionar a minha reflexão para entender melhor a proposta da “escola” cética. Dois aspectos despertaram o meu interesse para compreendê-la melhor: o primeiro aspecto consistia na prudência em relação ao estudo das diversas doutrinas filosóficas, ou seja, desde que a tradição ocidental foi estabelecida com Tales, as mais variadas linhas de pensamento e escolas filosóficas foram desenvolvidas ao longo do curso da história da filosofia. Neste sentido, juntamente com todas essas escolas, veio à tona o que o Prof. Porchat entendeu ser “o conflito das filosofias”; o segundo aspecto consistia em uma proposta muito interessante do ceticismo. O cético, diante das doutrinas dogmáticas formuladas pelas mais variadas escolas filosóficas, sempre em constante conflito umas com as outras, e com igual força persuasiva, suspende o juízo, e então, chega à tranquilidade. Todos estes ensinamentos, até então inéditos em minha vida, foram fruto dos estudos dedicados ao longo das aulas na graduação e da participação no grupo de estudos sobre o ceticismo, este sob orientação do Prof. Piva. Entretanto, entender filosoficamente que o ceticismo não é uma doutrina, mas sim uma habilidade, leva tempo – e comigo, não seria diferente. Mas a sua característica mais marcante consiste em seu traço persuasivo. Sem contar o seu caráter aporético e zetético.

Como disse em algumas outras publicações, descobrir o altruísmo filosófico do médico e filósofo Sexto Empírico, depois de ler as Hipotiposes Pirrônicas, foi um dos eventos mais marcantes em minha jornada universitária. Os textos de Sexto Empírico foram legados à história da filosofia como um dos principais trabalhos sobre o ceticismo na antiguidade. Existem diferentes manifestações de pensamento cético, e o trabalho de Sexto Empírico é fruto da compreensão do Ceticismo Pirrônico, cujo fundador é Pirro de Élis (365 – 275 a.C.). Posteriormente, saber que na Academia de Platão houve a manifestação do Ceticismo Acadêmico foi um elemento importantíssimo que indicava que o meu caminho estava direcionado para o norte.

Em um sábado à tarde, se ainda me lembro bem, o dia estava meio cinzento, resolvi procurar alguns livros em um sebo do ABC paulista. Precisava fazer alguns trabalhos da universidade, então, ali poderia ser um ótimo local para encontrá-los. Havia a biblioteca da universidade, onde os livros poderiam ser encontrados, sem dúvida, mas queria comprá-los para tê-los em mãos sempre que possível. O Prof. Piva já havia tecido alguns comentários sobre um livreto chamado O que é Ceticismo, de Plínio Smith. Quando cheguei no sebo, comecei a percorrer as prateleiras. Havia muitos livros. Aquilo era ótimo! Quando fui até a parte de filosofia, não encontrei os livros que estava procurando, mas acabei encontrando um pequeno livreto com as “suas páginas já amareladas”. Imagino que o leitor e leitora já devem saber sobre o que estamos falando. Sim! O que é Ceticismo. Peguei o livreto na mesma hora e começaria a lê-lo quando chegasse em casa.

Depois de percorrer algumas páginas, chego no capítulo “O ceticismo mitigado de David Hume”. Tivemos a oportunidade de estudar o pensamento de Hume no terceiro ano da graduação. Naquele momento, quando estávamos lendo o Tratado da Natureza Humana, já absorvia as aulas estando norteado pela interpretação do ceticismo mitigado de Plínio Smith em seu O que é Ceticismo – Hume tinha 27 anos quando terminou o Tratado, o seu primeiro livro, composto em três volumes: o livro 1 (Do entendimento) e o livro 2 (Das paixões) foram publicados em 1739; já o livro 3 (Da moral), juntamente com o “Apêndice”, foram publicados em 1740. Tenho que fazer um comentário, naquelas circunstâncias, tivemos pouquíssimo tempo para nos aprofundarmos na filosofia de Hume, e naquele momento, pelo menos para mim, o seu pensamento se apresentou como um dos mais desconcertantes e filosoficamente ricos. A origem das ideias, o fundamento das inferências causais e o fundamento da moral, todos esses elementos filosóficos eram extremamente fecundos e originais! Tudo isso precisava ser compreendido em detalhes. Queria aprofundar os estudos na filosofia de Hume, pois, naquele momento, tivemos um panorama introdutório. Todas aquelas dúvidas, questionamentos e inquietações começaram a fermentar e precisavam de outras respostas. Fiquei muito curioso para descobrir outros aspectos do pensamento de Hume.

Estava decidido que deveria aprofundar as minhas investigações em um mestrado e também continuar aprofundando os meus estudos sobre a “escola” cética e desenvolver um trabalho de pesquisa sobre o ceticismo mitigado de Hume. Pois bem, passei pelo processo seletivo e entrei para o programa de pós-graduação em filosofia em uma universidade de Guarulhos. Mas não só isso. Estava decidido a construir uma carreira acadêmica. Sou muito grato ao Prof. Plínio pelo período em que me orientou e, sobretudo, pela oportunidade de ter conhecido a sua interpretação sobre o ceticismo mitigado de David Hume em seu livreto – de poucas páginas, mas com um conteúdo extremamente fecundo. O seu livro, O Ceticismo de Hume, merece ser lido muitas vezes – a cada leitura, uma nova descoberta. Infelizmente, passei por um período muito difícil ao longo do mestrado e precisei interromper a pós para cuidar de minha saúde que estava muito enferma na época. Toda aquela situação comprometeu o andamento da pesquisa, assim como o andamento dos trabalhos. A minha capacidade de pensar, pesquisar e escrever estava bastante debilitada naquelas circunstâncias. Hoje estou plenamente recuperado, saudável e a minha capacidade de escrita voltou.

Aquela pesquisa não foi concluída e não pude dar andamento a minha carreira acadêmica. Entretanto, guardo na memória com muita alegria muitos dos bons momentos vividos, como as pausas para o café na cantina, as aulas na pós e os dias de estágio na graduação, momento em que tive a oportunidade de dar aulas. Foi incrível. Também guardo com muito carinho, aqui na gaveta de minha escrivaninha, os dois pincéis usados quando ministrei as aulas. Por outro lado, graças ao trabalho que foi desenvolvido na graduação, à publicação de nossa tradução do artigo de Richard Popkin na revista Sképsis e ao mestrado, ainda que parcialmente concluído, hoje, além de ser filósofo, também sou tradutor. E também sou tradutor graças aos estudos dos idiomas que passei a cultivar ao longo da vida, entre eles o francês, cujo interesse pelo estudo foi fruto da influência direta do trabalho de orientação iniciado na graduação e desenvolvido no mestrado. Estou consolidando a cada dia a minha carreira. Também é incrível ter a oportunidade de trabalhar com as pessoas de muitos lugares ao redor do mundo. O pensamento filosófico de Hume está vivo em mim, e hoje, o meu repertório filosófico é um pouco mais variado, mas ainda assim, se levarmos em conta toda a tradição ocidental, ele ainda é extremamente restrito, por isso, tenho a intenção de continuar estudando, além do próprio pensamento de Hume e do pensamento cético, outros pensadores e pensadoras. Tenho interesse, também, pelos estudos em filosofia francesa, sobretudo o pensamento no Siècle des Lumières. Ter mais alguns anos de leitura pela frente, quem sabe, é um pouco reconfortante.

Sou grato pela oportunidade daquele livreto com as “suas páginas já amareladas” ter cruzado o meu caminho em um sebo.

 

 

Sobre a pintura:

Vincent van Gogh (1853 – 1890)

Campo com lírios perto de Arles

Arles, maio de 1888

óleo sobre tela

Van Gogh Museum, Amsterdam (Vincent van Gogh Foundation)


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