Saturday, September 28, 2024

Esboço aporético I

 





Já parou para pensar por que é tão difícil falar sobre os sons? Os sons não são como os objetos que se apresentam à visão, ao tato, ao paladar ou ao olfato. Não há a palpabilidade espacial que possa nortear os sentidos, ainda que possamos ter uma noção de suas origens, ou seja, de onde vêm, se estão pertos ou distantes. Não podemos perceber cores, formas, texturas, gostos, temperaturas ou odores, pois o objeto da percepção auditiva é diferente. Nesses casos, por meio dos sentidos, o objeto torna-se perceptível. Por outro lado, a percepção dos fenômenos sonoros acontece espontaneamente. Para as pessoas dotadas de sentidos auditivos, os sons podem ser facilmente percebidos, ainda que por vezes possa haver dificuldade para identificá-los. Eles chegam aos ouvidos o tempo inteiro, e o tempo inteiro nos enganamos em relação a eles. Entretanto, para as pessoas com surdez, infelizmente isso não é possível. No caso da música, basta ligar o rádio e sintonizar a estação preferida. Mas há aqueles que gostam de ir aos shows. Ou ainda, há aqueles que gostam de visitar uma sala de concerto para ouvir um recital. Há ainda outros tipos de manifestações musicais. Ouvir música, para quem gosta ou tem o hábito da escuta, acontece espontaneamente. Basta que os fenômenos sonoros aconteçam para que possamos percebê-los. Entretanto, as coisas começam a se complicar quando tentamos fazer um relato sobre o fenômeno sonoro. Falar sobre um fenômeno sonoro para alguém não é a mesma coisa que apresentar o próprio fenômeno sonoro. Parece óbvio dizer isso, mas fazemos isso o tempo inteiro! Recorrer à linguagem e articular a terminologia é uma tentativa de depurar o fenômeno sonoro para torná-lo inteligível. Mas as palavras não são notas musicais, ainda que elas possam ser encaixadas em uma melodia. Ao menos dois aspectos nas palavras que fluem pela oralidade: sonoridade e inteligibilidade. Eis uma ambiguidade e tenho a impressão de que boa parte das dificuldades decorrentes da tentativa de elaborar um relato sobre os fenômenos sonoros emerge daí.

 

 

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Falar sobre os fenômenos sonoros pode ser um desafio. Eis uma das fontes na qual reside boa parte dessas dificuldades: depurar o fenômeno sonoro e fazer um relato sobre ele. Aliás, o que é música? Como defini-la? Os sons podem ser classificados e diferenciados entre si? Neste sentido, o que é uma nota musical e o que é um ruído? E uma melodia? Eis algumas perguntas para as quais a teoria musical oferece as suas respostas. Ainda que sons e ruídos sejam propagados pelo espaço, esses fenômenos não são perceptíveis como os demais fenômenos que se apresentam no espaço. Por exemplo, percebemos uma diversidade de sons quando ouvimos uma sinfonia. Há muitos instrumentos diferentes em uma orquestra. E aqui reside mais uma ambiguidade. Os instrumentos musicais expressam os seus respectivos fenômenos sonoros durante a transcorrência da sinfonia. Percebemos o fenômeno sonoro e as suas sutilezas. Os sons diferem entre si. E para uma pessoa disposta a ouvir música não há necessidade de saber qual é o nome do instrumento musical e qual é a sua função em uma orquestra! Os fenômenos sonoros apresentam-se aos ouvidos direta e espontaneamente. Eles simplesmente acontecem. Um desafio interessante: ouvir uma sinfonia e tentar identificar alguns elementos sonoros. Aliás, qual é o critério para diferenciar, e então definir, um som do outro. Neste sentido, identificar um som não seria a mesma coisa que identificar o próprio instrumento musical? Então, sonoridade e instrumento musical estariam intimamente ligados? Estes dois elementos, sonoridade e instrumento musical, poderiam ser fundidos em um único termo? Mas se há um único termo que funde esses dois elementos, haveria um nível de abstração envolvido, e neste sentido, uma certa distância entre sonoridade e instrumento musical. Entretanto, sonoridade e instrumento musical são duas coisas distintas. Perceba como recorremos à linguagem para articular todas essas noções e tornar a coisa inteligível diante de todas essas dificuldades! Perguntas para as quais a teoria musical oferece as suas respostas. E tenho a impressão de que um possível relato sobre uma peça sinfônica, ainda que sonoridade apresente algum tipo de relação com instrumento musical, não é a própria sinfonia – obviamente. Até porque um relato talvez nem dê conta de tamanha complexidade.


Às vezes tenho a impressão de que estamos condenados a viver tateando a superfície mais imediata das coisas.

 

 

Sobre a pintura:

John Singer Sargent

Rehearsal of the Pasdeloup Orchestra at the Cirque d'Hiver

c. 1879

Óleo sobre tela

The Art Institute of Chicago


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