As pessoas grandes
nunca entendem nada por elas mesmas, e é muito cansativo para as crianças
ficarem sempre explicando as coisas para elas
Antoine de
Saint-Exupéry, O pequeno príncipe
Assim como
algumas pessoas, gosto da companhia dos livros. E passei a valorizar ainda mais
esse convívio depois que comecei a refletir sobre tudo o que um rastro de
palavras impresso em uma folha de papel pode representar. Em minha pessoa, a
faceta de filósofo e a de tradutor têm algo em comum: ambas encontram na
organicidade das palavras certos nutrientes que estimulam o nascimento de novos
pensamentos. O filósofo, munido de seu ceticismo, em uma espécie de prontidão,
coloca sob suspeita o que é passível de questionamento. O ceticismo oferece
instrumentos importantes para a boa manutenção da lucidez, sobretudo nos dias
em que um espesso nevoeiro paira na atmosfera. O tradutor, munido de suas
habilidades tradutórias, sempre promovendo o convívio estreito de pelo menos
dois idiomas, viabiliza a comunicação. A tradução oferece instrumentos
importantes para ampliar as capacidades de comunicação, sobretudo nos dias em
que a arte da conversação anda sendo tão maltratada. Neste sentido, quando se
trata de palavra escrita, o olhar apreende a leitura que perpassa
simultaneamente o filósofo e o tradutor.
Mas
não quero falar sobre a faceta de filósofo, nem sobre a faceta de tradutor.
Quero apenas explorar um pouco mais esse lado que permeia ambas as facetas: o
hábito da leitura. Filósofo e tradutor, também são, antes de mais nada,
leitores. O filósofo encontra nos livros legados ao longo da história da
filosofia as mais diversas correntes de pensamento. E cada uma delas pretende
transmitir os mais variados ensinamentos. Entretanto, o filósofo encontra no
ceticismo uma maior afinidade de pensamento. O tradutor encontra na sua
atividade profissional as oportunidades para edificar os mais diferentes
vínculos com a vida cotidiana. E cada uma dessas oportunidades representa a
viabilização prática de diferentes virtudes sociais. Entretanto, o tradutor
encontra na tradução técnica os meios para colocar em prática algumas
habilidades e reconhece a influência de Wittgenstein e suas reflexões sobre a
linguagem durante os momentos de trabalho. Assim, filósofo e tradutor encontram
no convívio com as palavras um hábito formidável. De um lado, temos a reflexão
crítica, e de outro, a investigação incessante em busca do significado e da
melhor solução tradutória para viabilizar a comunicação.
O
convívio com os livros é uma maneira de aperfeiçoar e dignificar o gênero
humano. Sou aquele tipo de pessoa que mantém uma relação dúbia com as palavras.
Calma, eu explico! Leio por prazer e por obrigação. Quando estou lendo por
prazer, sinto um tipo de satisfação muito agradável em virtude da ausência de
qualquer tipo de obrigação: escolher um exemplar na ainda modesta biblioteca – edificar
uma biblioteca é um empreendimento para uma vida inteira – é um momento muito
gostoso. Passar algumas horas na companhia de um autor ou autora é um momento
de encontro. As palavras escritas no papel oferecem a oportunidade de iniciar
um certo tipo de comunicação: autor e leitor vivem nas palavras o ponto de
encontro. Mas, ler por obrigação, durante as rotinas tradutórias, não implica
necessariamente a ausência de prazer na leitura. Trabalhar com diferentes
projetos de tradução, com prazos curtos e os mais variados tipos de exigência,
é algo apaixonante. Os desafios, os diferentes textos, as informações
envolvidas, os mais diversos aspectos representam uma oportunidade de colocar
em prática diferentes habilidades tradutórias. E o tradutor sempre aprende algo
novo em suas atividades, uma vez que as habilidades podem ser aperfeiçoadas em
diferentes situações.
A
escrita deixa rastros de pensamentos em uma folha de papel em branco. Palavras,
frases, parágrafos, páginas, capítulos e eis que temos um livro. Em incontáveis
horas de trabalho, o percurso de um itinerário existencial torna-se inteligível
por meio de palavras. Horas e horas de trabalho, mas e quanto a todo o tempo de
vivências propriamente dito? E quanto ao tempo de maturação das reflexões? Com
toda a riqueza da matéria-prima, quais são os instrumentos de trabalho para
moldá-la? Papel e caneta sobre a escrivaninha, uma luminária para dissipar a
penumbra, mais um corpo disposto a pensar... sobre o que escrever. Ainda que o
computador esteja presente na vida cotidiana, muitas pessoas ainda escrevem
dessa maneira. Uma palavra que desabrocha nos rincões mais recônditos, num
impulso elétrico, assim como Nietzsche dizia, circula pelo corpo inteiro: da
cabeça desce pelos braços, passa pelas mãos e flui pela ponta dos dedos até desembocar
na caneta empunhada que suja a folha do papel com as cores de símbolos estranhamente
desenhados e curiosamente decifráveis pelo testemunho atento do olhar: existo
porque a palavra que está em mim está no mundo.
Em épocas
passadas, mas num passado não tão remoto, as coisas aconteciam mais ou menos
assim. Escritores acumulavam calhamaços de papel escrito em seus escritórios.
Os manuscritos originais, como se costuma dizer, cheios de rastros de
pensamento. E pensar que, num passado mais remoto, essa mesma prática era bem
mais complicada, por razões óbvias. Avanços tecnológicos incipientes, carência
na adequação de recursos materiais. Por exemplo, na Antiguidade era comum
registrar as informações em blocos de pedra, tábuas ou papiro. Houve a adoção
do papel e uma pena passou a ser usada para desenhar as palavras. O trabalho na
escrivaninha era rudimentar, uma vez que não havia energia elétrica, logo a luz
de uma vela era responsável por dissipar a penumbra e viabilizar a atividade de
pensamento.
O surgimento
da escrita foi algo notável para a civilização. A linguagem tornou-se
exprimível e interpretável por meio de uma língua determinada em símbolos
imagéticos. Os símbolos desenhados. As teorias da comunicação indicam que,
antes da escrita, a oralidade era o meio de transmissão primordial que
viabilizava as trocas comunicativas. Ou seja, a comunicação estaria toda
alicerçada nos sons, e neste sentido, sob o ponto de vista da expressão
corporal, oralidade e audição teriam um papel privilegiado na comunicação. É
curioso notar que a possibilidade de sistematização alfabética da escrita
representou uma nova maneira de expressar e explorar a linguagem. A comunicação
passa a se estender para outras regiões do corpo, como os braços, as mãos e
olhar, para expressar a língua por meio da escrita. Se há comunicação, é porque
muitas regiões do corpo estão envolvidas na expressão da linguagem. Assim,
surge a possibilidade de alicerçar a comunicação escrita num meio materialmente
palpável, como blocos de pedra, tábuas ou papiro. Aliás, já havia comunicação
antes da escrita? Os sons desordenadamente emitidos e os movimentos corporais
poderiam ser caracterizados como um modo de comunicação? O que é comunicação?
Os animais não humanos são capazes de se comunicar? Suspeitas à parte, o fato é
que a escrita surgiu num dado momento.
No atual
estado em que as coisas se encontram, talvez boa parte dessas questões não
passe pela cabeça de muitas pessoas, afinal de contas as palavras sempre
estiveram presentes na vida cotidiana de modos diversos. Entretanto, talvez
essa noção seja um tanto quanto cômoda, uma vez que pensar sobre a origem da
escrita e suas implicações ulteriores para a cultura pode ser um trabalho de
fôlego, sobretudo quando alguém deseja articular uma compreensão mais ampla e
aprofundada sobre o tema. O desenvolvimento da linguagem é uma conquista
civilizacional. E quanto mais pessoas são alfabetizadas, na língua materna e
eventualmente em outras línguas, tanto melhor para todo mundo. Por exemplo, uma
pergunta parece ser especialmente oportuna agora. Qual foi o impacto que a
escrita provocou na cultura então vigente quando ela surgiu na Antiguidade? O status
quo da cultura oral estava estabelecido, e assim, tenho a impressão de que
a novidade deve ter gerado as mais diversas reações. Porém, parece não fazer
muito cabimento explorar uma pergunta dessa envergadura no espaço de um blog –
e nem seria essa a minha intenção. Mas, ainda assim, trago deliberadamente a
pergunta para que o leitor ou leitora seja estimulado com a proposta de uma possível
reflexão.
A cultura
ocidental tem dois autores cujas obras são consideradas fundamentais. Estamos
falando de Homero e Hesíodo. Há controvérsias em torno da figura desses dois
poetas. Há teorias que defendem a ideia de que esses autores existiram, mas há
teorias que defendem a ideia de que diversos outros poetas foram unificados nas
figuras de Homero e Hesíodo, ou seja, o trabalho coletivo de inúmeros poetas foi
reunido e o resultado desses trabalhos foi creditado unicamente ao nome desses
dois poetas. Homero é autor da Ilíada. E Hesíodo é autor de Os
trabalhos e os dias. Os poemas homéricos eram transmitidos pela oralidade,
assim como os poemas hesiódicos. Na obra de Homero, os poemas épicos relatam os
feitos heroicos e figuras lendárias durante a Guerra de Troia, e neste sentido,
temos o ideal da cultura aristocrática, onde a coragem era ressaltada como um
valor capital. Na obra de Hesíodo, também há o relato de feitos heroicos,
entretanto, Hesíodo narra esses feitos no âmbito da vida campesina, com o
trabalho árduo no campo por meio de pessoas que cultivavam penosamente a terra
com o suor do rosto para garantir a manutenção da vida. Braços, mãos e corpos.
Eis o valor e a importância do trabalho.
Ou seja, na Grécia
Arcaica, temos uma cultura eminentemente oral. Os aedos viajavam por diferentes
lugares e recitavam esses poemas. As pessoas ouviam aqueles versos e todo um
imaginário foi sendo fecundado – é importante notar que, conforme a própria
civilização torna-se culturalmente diversa, muitas daquelas noções passaram
a ser problematizadas. Originalmente, o poema é um tipo de expressão que
privilegia a oralidade, pois toda a sua estrutura métrica, as sílabas poéticas
e todo o esquema rítmico de versificação e entonação oral teriam como objetivo facilitar
a memorização dos versos e provocar um efeito sonoro agradável aos ouvidos. Isto
é, o trabalho dos poetas tem tudo a ver com um trabalho de memória. As
habilidades em torno da memória eram habilidades extremamente valiosas, uma vez
que ser capaz de se recordar de uma infinidade de versos era uma tarefa bastante
complexa. E não menos complexa eram as habilidades em torno da recitação
adequada daqueles poemas, com todo o trabalho de expressão oral envolvido.
Assim, esse
tipo de cultura passou a ser transmitido ao longo de gerações. As próprias
comunidades e os mais diferentes tipos de sociabilidade passaram a se organizar
em torno dessa noção. E com o surgimento da pólis, temos as condições
favoráveis para o florescimento do pensamento filosófico, histórico, científico, além da literatura, arquitetura e da própria Democracia. É nesse ambiente que a escrita começa a se
propagar. Mas não pense que a adoção da escrita foi um acontecimento sem
maiores repercussões. Muito pelo contrário! Adotar a escrita representava
naquele momento uma mudança profunda na maneira de se comunicar ou até mesmo de
organizar a sociabilidade. Tendo em vista que as pessoas estavam acostumadas a
transmitir o legado cultural por meio da oralidade, então quais seriam as
possíveis implicações para a cultura com a adoção da escrita? Se os poetas tiveram
um papel relevante na tradição oral, o que poderia acontecer com eles com o
surgimento da escrita? Se um poeta usasse a memória para transmitir os versos,
logo ela exercia um papel central nessas práticas, então quais seriam os
possíveis impactos para a memória com a adoção da escrita?
É curioso
notar, por exemplo, a posição de Platão à época. Segundo o filósofo, a adoção
da escrita poderia gerar sérias implicações para a cultura. Platão considerava
que o texto escrito poderia ser uma fonte de infinitas controvérsias.
Diferentemente de uma recitação oral, onde é necessário haver a presença de uma
pessoa para recitar um poema, as palavras no papel poderiam circular
livremente, sem haver a necessidade da presença de uma pessoa, uma vez que a
existência do texto passaria a ser um evento autônomo e independente. Ou seja, com
a adoção da escrita, autor e texto poderiam existir de maneira autônoma e
independente, sem que ambos estivessem necessariamente presentes para que a
mensagem se tornasse inteligível. Além disso, um outro problema levantado por
Platão considerava a interpretação. Como um autor poderia explicar as suas
próprias ideias com o leitor tendo acesso direto ao texto sem haver a
necessidade de sua presença? Uma interpretação poderia estar equivocada, ou
ainda, um leitor poderia ter dúvidas. Não bastasse isso, Platão considerava que
o texto escrito poderia representar um impacto para o pensamento, pois se as
palavras fossem escritas, não haveria mais a necessidade de recorrer à memória,
ou ao próprio pensamento, para transmitir a comunicação. Tudo ficaria
registrado em outro lugar. Isto é, haveria o declínio do uso da memória e do
pensamento, e isso poderia representar um sério problema. Algumas dessas impressões
estão presentes em Textos básicos de linguagem de Platão a Foucault.
Platão
introduziu a problemática em torno da sociedade letrada. Adotar as letras como
meio de expressão, promoção da cultura e manutenção das instituições implica
difundir e ensinar a aquisição dessas habilidades entre as pessoas. A escrita foi
adotada, e as objeções levantadas por aquele filósofo foram importantes no
sentido de problematizar e estimular o debate sobre aquilo que representou uma
mudança cultural profunda na Antiguidade. Muitas obras foram escritas e graças
à adoção dessa prática podemos ter acesso ao teor de certos textos com valor
inestimável. Registrar um texto por meio de palavras tem a vantagem de poder
legá-lo à posteridade. Uma obra literária pode romper a barreira do efêmero
para tornar-se parte do conjunto de um patrimônio cultural. Hoje, temos uma
variedade incrível de livros. Os assuntos e os títulos são diversos. E, além
disso, podemos ter um convívio muito gostoso com os clássicos escritos por
autores e autoras de outras épocas. Mas não pense que não houve eventos
traumáticos envolvendo a escrita ao longo da história. Por exemplo, como
avaliar tudo o que foi perdido com o incêndio da Biblioteca de Alexandria,
momento em que os textos com teor inestimável para a humanidade arderam em
chamas? Fahrenheit 451? Não bastasse isso, ainda na Antiguidade, como
mensurar as implicações decorrentes do fechamento oficial das escolas de
filosofia para o livre curso do pensamento?
Desse modo, é
importante considerar o papel que os livros e a escrita exercem para a promoção
dos valores civilizacionais. Diferentes gêneros textuais, diferentes autores e
autoras e diferentes estilos. Uns dizem que encontramos em cada um desses
elementos um bom pretexto para nos olharmos diante do espelho. Outros dizem que
encontramos em cada um desses elementos um bom pretexto para conhecer outras
personalidades. Schopenhauer diria que o estilo é a expressão da própria
personalidade. Assim, a experiência de leitura pode ser inquietante,
provocativa, zombeteira, edificante, subversiva ou mesmo tranquila. Há quem
diga que bons autores são aqueles que conseguem colocar em movimento as
paixões. Cada camada de leitura, um novo afeto, novas impressões. Há livros que
conseguem deixar o leitor ou leitora com os olhos marejados, com um nó na garganta,
como no caso de Os miseráveis, de Victor Hugo. Mas há livros que
conseguem levar o leitor ou leitora para um lugar ingenuamente terno, mas, ao
mesmo tempo, sem deixar de lado a potência da mensagem, como no caso de O pequeno
príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry. E não há como deixar de notar nos
textos filosóficos o trabalho de pensamento quando alguém se propõe a levá-lo ao
limite.
Neste sentido, os
livros podem ser uma fonte de reflexão muito fecunda para a promoção de atos de
benevolência. Essa virtude social anda de mãos dadas com os livros. A
benevolência, por exemplo, exerce um papel notável na filosofia de David Hume.
Podemos considerar a benevolência como uma espécie de cimento que concretiza o
vínculo entre as boas ações. Hume estudou na França, e além disso, foi amigo
dos philosophes, entre os quais, Denis Diderot – juntamente com D’Alembert, Diderot foi o
editor responsável por um dos maiores empreendimentos editorais do Séc. XVIII,
a Encyclopédie. O filósofo escocês sempre foi muito bem acolhido todas
as vezes em que esteve em território francês, e isso é um forte indicativo de
que Hume praticava e tinha um grande apreço pela sociabilidade, ou seja, um
traço concreto da benevolência. É importante ressaltar que Hume foi um filósofo
simplesmente apaixonado pela literatura. Além de filosofia, Hume devorava
outros gêneros, como história, ensaios e os mais diversos temas. Ele foi um
verdadeiro frequentador das belas letras, sobretudo dos clássicos latinos. Num
dado momento de sua vida, Hume chegou ainda a ser bibliotecário, o que
viabilizou o acesso a uma infinidade de livros. A paixão pelos livros nutria as
suas reflexões e podemos perceber isso quando lemos os seus textos. Assim, a
paixão de Hume pelas belas letras pode servir como um incentivo para que o
leitor ou leitora do blog trilhe os seus próprios caminhos pelas mais diversas
páginas de um livro.
Reservar algum
momento do dia para cultivar o hábito da leitura pode ser uma atitude
transformadora. Ler é edificante. Ou não, dependendo do ponto de vista!
Alimentar o pensamento com novas ideias pode ser desafiador. Por meio das
leituras, é possível aperfeiçoar outra virtude social extremamente benéfica
para o bom convívio social, uma vez que o contato com as palavras pode
aperfeiçoar o gênero humano. É aqui que entra em cena a simpatia, um outro componente
filosófico presente em Hume. Para que haja a benevolência, é necessário
reconhecer a importância e o valor da figura do gênero humano. Seres humanos
têm sentimentos e podem sofrer. A simpatia pode ser considerada como um vetor
para o direcionamento da benevolência. Se as ações benevolentes podem ser
consideradas uma espécie de cimento que concretiza o vínculo entre as boas
ações é porque existe um ser humano que será perpassado pela benevolência
durante a sua propagação. A simpatia nasce quando consideramos a possibilidade
de nos colocarmos no lugar de outrem, ou seja, quando estamos propensos a nos
sensibilizar com as dores, angústias e o sofrimento alheios. Ou seja, quando
literalmente nos colocamos na pele de outra pessoa. Mas a simpatia não está
restrita simplesmente ao âmbito dos seres humanos; ela também se estende aos
outros animais e formas de vida. Eles também têm sensibilidade, sofrem, pensam,
ainda que de maneira distinta da nossa, e neste sentido, merecem respeito. Assim, não posso deixar de lembrar da simpatia que os cães, por exemplo, sentem
em relação a tutores ou tutoras. É o caso do cocker spaniel Flush, personagem
central da obra homônima de Virginia Woolf, que dava cambalhotas de felicidade
quando via sua tutora. Sendo assim, por meio das leituras, afeiçoamo-nos com os
mais diversos personagens. Como não se compadecer com a história de Fantine
e Cosette? O que dizer da figura dos Thénardiers? E o que fizeram
com Cosette? Depois que os “miolos secaram”, tamanha era a dedicação à
leitura, em virtude do acesso a uma ampla biblioteca, como não se sentir tocado
quando D. Quixote decidiu se tornar cavaleiro e sair pelo mundo em busca
de aventuras com o seu companheiro Sancho Pança? Como não ficar perplexo
com Os sofrimentos do jovem Werther? Por isso, aprendemos também a
exercitar a gratidão pelos escritores e escritoras por terem sido capazes de imaginar
histórias tão valiosas, além de, num ato de generosidade, terem partilhado cada
uma delas conosco.
Sendo assim, quando
o cultivo da simpatia nasce entre as pessoas, o ambiente torna-se propício para
o cultivo de outra virtude social. Estamos falando da generosidade. Hume
considera que, ao contrário de outros filósofos, como é o caso de Thomas
Hobbes, os seres humanos não são unicamente egoístas. Além do egoísmo, ou seja,
do amor próprio e da consideração de nossos próprios interesses, também somos
altruístas, ou seja, consideramos o bem-estar e os interesses alheios. Em
muitas de nossas relações cotidianas, ou até mesmo em nossas relações com os
outros animais, agimos tendo em vista o bem-estar alheio. Por exemplo, quando
estamos com um carrinho de compras na fila do supermercado e uma pessoa chega,
com alguns poucos itens, e pergunta se não seria possível ceder o nosso lugar
para que ela possa passar na frente. Obviamente, não seremos egoístas. Ou
ainda, quando um gatinho de rua pula o muro de nossa casa e passa a conviver
conosco em nosso quintal. Obviamente, acolheremos aquele animalzinho,
alimentá-lo-emos, daremos água e carinho. Nesses dois exemplos, demonstramos
como o altruísmo é capaz de promover ações desinteressadas. No primeiro caso,
ele foi capaz de produzir um ato de gentileza. No segundo caso, ele foi capaz
de produzir um ato de acolhida. Por outro lado, além das relações entre seres
humanos e animais, também é necessário considerar a relação entre seres humanos
e natureza. E essa relação é sobretudo filosófica. Os nossos interesses
particulares também devem levar em consideração a natureza. Quando as ações
humanas fazem intervenções na natureza, os fenômenos naturais tendem a se
intensificar, e assim, o que já era dotado de força, tende a se fortalecer
ainda mais. Neste sentido, se levarmos em conta apenas os interesses humanos em
detrimento dos interesses da natureza haverá um desequilíbrio na balança do
egoísmo vs. generosidade. Assim, para haver o equilíbrio, também é necessário
considerar a natureza para que ela não se volte contra os seres humanos,
animais e outras formas de vida.
Entretanto,
passamos por momentos de dificuldade ou dolorosos, e em momentos como esses, o
convívio com os livros e todos os modos possíveis de expressão artística, ou
até mesmo com amigos, tornam-se inestimáveis. Com eles, podemos encontrar uma
fonte importante para o cultivo de novas reflexões. Nas belas letras e nas
artes, poderemos visitar autores, autoras e artistas para que os nossos
pensamentos sempre estejam em movimento. A literatura, as belas letras e as
artes em geral desempenham um papel considerável no aperfeiçoamento do gênero
humano, assim como foi dito, suavizando os seus traços. Assim, pensar
juntamente com as outras pessoas, sobretudo com as pessoas que têm lições
importantes para partilhar, torna a vida mais leve, e a sensação que temos é
como se estivéssemos vivendo um grande passa tempo em detrimento dos golpes
imprevisíveis da fortuna. A tradição filosófica ocidental, por exemplo, tem
mais de 2.500 anos e certamente muitas questões e temas com os quais filósofos
e filósofas vêm pensando podem ser uma fonte bastante considerável de
ensinamentos. Em especial, a “escola” cética, que tem como prática a suspensão
do juízo, cujo fim é a tranquilidade, sempre mantendo sob suspeita as alegações
dogmáticas. Nas palavras, em especial, podemos encontrar a seiva vital para
nutrir as nossas ideias. E, assim, o hábito da leitura pode se tornar uma
experiência transformadora. A arte da conversação, por outro lado, desempenha o
papel promotor das mais diversas trocas intersubjetivas. É o que ocorre quando
terminamos de ler um livro e passamos a partilhar as impressões de nossa
leitura com as outras pessoas.
Caro leitor ou
leitora, gostaria de concluir com um alerta. Observe que os argumentos expostos
ao longo deste ensaio não têm nenhuma pretensão de revelar a natureza das
coisas. Como disse em outras oportunidades, a argumentação cética tem uma
pretensão bem mais modesta em relação ao empreendimento filosófico. Por
exemplo, quando vamos ao consultório médico é comum haver a solicitação de
certos exames para fazer o acompanhamento rotineiro e saber como anda o estado
de saúde. Quando retornamos, já com os exames em mãos, ficamos sabendo dos
resultados. Então, dependendo dos tipos de exame e dependendo dos resultados,
eles poderão indicar certas carências, como a falta de certas vitaminas,
momento em que provavelmente receberemos uma prescrição indicando a necessidade
de suplementação para repô-las. De maneira análoga, a falta do hábito
da leitura apresenta indícios de longa data indicando a manifestação de certas
carências, o que é possível observar por meio de certos “sintomas”
aparentes, e por isso, a recomendação da leitura teria o simples objetivo de 1)
suprir algumas carências em decorrência da ausência do hábito da leitura – obviamente
para quem não cultiva o hábito –; e 2) reforçar o incentivo para quem já
cultiva o hábito, tendo em vista que, por meio das palavras, pela diversidade
de leituras e pela visitação a diferentes autores e autoras poderemos encontrar
uma suplementação balanceada e adequada para a boa manutenção das
necessidades intelectuais.
Muito
obrigado pela atenção e espero que você tenha apreciado a leitura. Até a
próxima publicação!
Referências bibliográficas:
BRADBURY. R. Fahrenheit 451. Trad. Cid
Knipel. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2020.
CORDERO, N. L. A invenção da filosofia. Trad.
Eduardo Wolf. São Paulo: Odysseus Editora, 2011.
GOETHE, J. W. Os sofrimentos do jovem Werther. Trad.
Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Trad. Luiz Otávio
Mantovaneli. São Paulo: Odysseus Editora, 2011.
HOMERO. Ilíada. Trad. Frederico Lourenço. São
Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2013.
HUGO, V. Os miseráveis. Trad. Frederico Ozanam
Pessoa de Barros. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017.
HUME, D. Investigações sobre o entendimento humano e
sobre os princípios da moral. Trad. José Oscar de Almeida Marques. São
Paulo: Editora Unesp, 2003.
MARCONDES, D. Textos básicos de filosofia da linguagem
de Platão a Foucault. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
NIETZSCHE, F. W. Sobre verdade e mentira. Trad.
Fernando Moraes de Barros. São Paulo: Hedra, 2007.
PEREIRA, O. P. Rumo ao ceticismo. São Paulo:
Editora Unesp, 2007.
SAAVEDRA, M. C. O engenhoso
fidalgo D. Quixote de La Mancha. Trad. Sérgio Molina. São Paulo: Editora
34, 2016.
SAINT-EXUPÉRY, A. D. O pequeno príncipe. Trad.
Rafael Arrais. São Paulo: Faro Editorial, 2022.
SCHOPENHAUER. A. O mundo como vontade e como
representação (1º tomo). Trad. Apr. Notas e Índices: Jair Barboza. São
Paulo: Editora Unesp, 2005.
SMITH, P. O que é ceticismo. São Paulo: Brasiliense,
1992.
______. O ceticismo de Hume. São Paulo: Loyola,
1995.
THOMAS, R. Letramento e oralidade na Grécia Clássica. Trad.
Raul Filker. São Paulo: Odysseus Editora, 2005.
WILSON,
A. M. Diderot. Trad. Bruna Torlay. São Paulo: Perspectiva, 2012.
WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. Trad.
Marcos G. Nontagnoli. Rev. da Trad. e Apr.: Emmanuel Carneiro Leão,
Petrópolis: Vozes, 2009.
WOOLF, V.
Flush. Trad. Jorio Dauster. Pref. Anna Snaith. Ilustrações:
Vanessa Bell, São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2020.
Sobre a pintura:
Vincent van Gogh (1853-1890)
Os comedores de batata
Óleo sobre tela sobre painel
KM 109.982
Kröller Müller Museum
Brazilian Portuguese Translations, Brazilian Portuguese Translator #brazilianportuguesetranslations #brazilianportuguesetranslator