Eis mais uma publicação em
nosso blog. Sejam bem-vindo(a)s mais uma vez! Em nossa publicação anterior,
falamos sobre Duas etapas da tradução:
uniformidade terminológica e investigação terminológica. Por um lado, a uniformidade terminológica torna o
projeto consistente – e a partir do momento em que o projeto é consistente ele
tem qualidade. Por outro, a investigação terminológica viabiliza a busca da
tradução mais adequada de um termo. Então, ao fim e ao cabo, teremos o texto
original e o texto traduzido. A título de ilustração, nos países onde certos
produtos ou serviços são comercializados, o texto original, escrito em inglês
ou francês, é direcionado para o respectivo público a fim de impulsionar as
vendas desses produtos ou serviços. Entretanto, esses mesmos produtos ou
serviços também são comercializados fora de países anglófonos e francófonos. Há
outros mercados ao redor do mundo aos quais esses produtos ou serviços serão
oferecidos. E, no nosso exemplo, o texto traduzido circulará com o objetivo de
atender as necessidades do público brasileiro falante de português. O exemplo é
oportuno, uma vez que os meus pares de idioma são inglês>português e
francês>português. Diante dessas circunstâncias, a noção de público leitor
ou mesmo de audiência aos quais o texto será direcionado ganha destaque. Com
essa noção no horizonte, o profissional da palavra poderá orientar o seu
trabalho para que o texto traduzido seja capaz de atender aos anseios e suprir
as necessidades da audiência. Assim, para que o intento seja bem-sucedido, será
necessário levar em consideração pelo menos dois aspectos: de um lado, o texto
original; de outro, o texto traduzido voltado para a sua audiência; e, entre
ambos, sempre promovendo o entendimento, a compreensão e a comunicação para
estreitar, entre outras coisas, laços comerciais e culturais, figura a imagem
do profissional da palavra. Se levarmos em conta que as palavras é a
matéria-prima que enseja a atividade tradutória, então, transformar essa
matéria-prima em um produto bem acabado implica reconhecer que as palavras
devem receber todo o nosso cuidado. Na publicação de hoje, gostaria de falar
sobre o cuidado com as palavras durante a tradução.
Por mais inquietante que possa ser a pergunta o que é uma
palavra?, e independentemente das possibilidades de respostas, o fato
é que as palavras estão presentes nas nossas vidas e nas mais variadas
circunstâncias. A pergunta pode fazer algum sentido para certos países e as
suas respectivas culturas, sobretudo nos países ocidentais. Entretanto, em
outras regiões do mundo, e em outros idiomas, talvez a noção de palavra não
tenha sentido algum. Por outro lado, há uma certa inclinação em atribuir às
palavras um suposto significado intrínseco, mas o fato de os idiomas ocidentais
acolherem a ideia de palavra não implica necessariamente que as palavras tenham
um significado intrínseco. Por exemplo, uma mesma palavra pode ser usada em
contextos diferentes e conforme o uso transita entre os contextos a oração
teria um significado distinto. Vamos usar dois exemplos para ilustrar isso.
Usemos o verbo “pintar”. Veja estes exemplos. Apeles pintou um quadro
no qual representava a figura de um cavalo. Nesse contexto o verbo “pintar”
é usado para indicar que Apeles pintou um quadro onde representava a imagem de
um cavalo. Aliás, se me permitem a digressão, recordo-me de uma anedota sobre
esse pintor. Certa feita, Apeles estava pintando um quadro e estava tentando
reproduzir a imagem da espuma na boca de um cavalo, mas não estava conseguindo.
Após muitas tentativas malsucedidas e já se sentido frustrado e extremamente
aborrecido, o pintor pegou a esponja onde limpava os seus pincéis e a
arremessou na direção da tela. Para a sua surpresa, a esponja atingiu em cheio
a boca do cavalo e da maneira mais inimaginável que se possa pensar o efeito da
espuma que tanto desejava e procurava foi finalmente reproduzido. Depois disso,
Apeles sentiu-se tranquilo. Voltando ao raciocínio. Vamos usar o verbo “pintar”
no segundo exemplo. Ela pintou o sete enquanto estava tramando
planos mirabolantes. Nesse contexto o verbo “pintar” é usado como uma
expressão idiomática: “pintou o sete” indica que a insensatez estava dando o
que falar enquanto os planos eram maquinados.
Levar em conta o surgimento de novas possibilidades semânticas a partir do uso
das palavras em diferentes contextos pode ser uma prática muito benéfica para a
atividade tradutória. Em minha experiência profissional, tive a oportunidade de
trabalhar com textos financeiros, governamentais, jornalísticos,
medicina, marketing, técnicos, entre outros. Além dessa abordagem,
ao traduzir um texto, sempre é recomendável que o profissional da palavra leia
atentamente o texto de origem para que seja possível redigir uma tradução
adequada. Mas não é só isso. Ler implica escrutinar atentamente as palavras.
Tanto no texto original quanto no texto de chegada. Se me permitem a ocasião,
gostaria de partilhar uma experiência que vivenciei quando traduzi um material
para um de meus clientes há um tempo. O cliente em questão era uma agência de
tradução norte-americana que prestava serviços para uma empresa com uma filial
brasileira. O material tinha uma quantidade razoável de palavras, ou seja, foi
dedicado um tempo considerável de trabalho para a conclusão do projeto. O
material que foi traduzido era para área de seguros. Texto de origem inglês
para o português. Durante o processo de tradução, quase no final do documento,
havia uma lista com os números de telefone de cada filial da empresa. Notei que
o código de discagem internacional da filial brasileira (+55) estava sendo
usado indevidamente para a filial de outro país. Assim, ao notar o equívoco,
enviei uma mensagem para o gerente de projetos indicando o fato e sugeri que o
número poderia estar incorreto, uma vez que o código de discagem internacional
do Brasil é +55. Disse, então, que aguardaria pelas informações corretas para
que a tradução pudesse ser concluída. Tempos depois, o gerente de projetos
respondeu à mensagem indicando que o número havia sido corrigido. E ainda
recebi um agradecimento do cliente por conta de ter identificado um erro no
texto original que acabou evitando um problema de comunicação da empresa
posteriormente. Por fim, a tradução foi entregue com o número de telefone
correto e com o respectivo código de discagem internacional (+55) corrigido no
texto de origem, também.
Ainda que o texto original seja bem escrito, esses pequenos equívocos podem
acontecer. E quando isso acontecer esteja preparado para entrar em contato com
o gerente de projetos para fazer os comentários que considerar pertinentes.
Afinal, o profissional da palavra está oferecendo soluções linguísticas para os
seus clientes e quando falamos em soluções linguísticas estamos falando de
entrega de qualidade, além do trabalho propriamente dito. No entanto, entregar
isso para o cliente implica reconhecer que o trabalho de tradução tem o seu
valor, ou seja, ele precisa ser justamente remunerado. O tradutor é um
profissional que cultiva o hábito dos estudos em sua vida cotidiana. No meu
caso, a atividade tradutória ocupa uma parte de minha vida, mas tenho interesse
em outras coisas. Tenho formação na área de humanidades e em boa parte de meu
tempo livre estou colocando as leituras em dia. Sinto-me muito bem quando estou
convivendo com as palavras e encontro em cada uma delas um ingrediente formidável
para alimentar o meu pensamento. Entretanto, quando tenho tempo livre, gosto de
passear e tomar um café na padaria, também.
Tenho uma cliente muita simpática em Nantes, na França, e já tivemos a
oportunidade de trocar algumas palavras sobre a importância de cultivar o
hábito dos estudos. E isso se torna especialmente importante quando estamos com
um livro nas mãos. Depois da pandemia de Covid-19, cheguei à conclusão de que
quem lê nunca está só. Podemos constatar isso quando temos a oportunidade de
visitar uma livraria ou de frequentar uma biblioteca; mas essa evidência ganhou
ainda mais força quando pegávamos um de nossos exemplares em nossa modesta
biblioteca particular durante o período de confinamento. Em certa ocasião, na
aula de francês (pela Internet) durante o período de confinamento, havia
comentado com a minha professora que gostaria de ler Os miseráveis,
de Victor Hugo. No dia seguinte à aula comprei o livro pela Internet e, dias
depois, ele chegou. Passados alguns dias, em uma de nossas trocas de mensagens,
comentei com a cliente de Nantes que havia começado a leitura daquela obra.
Comentei na aula de francês também. Terminei o primeiro tomo faz um tempo e
pretendo começar em breve a leitura do segundo. Acabei direcionado o fio
condutor de minhas leituras para outros autores – é comum que a nossa
curiosidade seja guiada por nossas inquietações filosóficas. Refiro-me à
tradução brasileira da Penguin Classics Companhia das Letras de 2017. Ter
começado a leitura de Victor Hugo naquele momento foi extremamente tocante.
Durante aquele período, li outros autores também. Os livros alimentam a nossa
existência. Ainda não tive a oportunidade de trabalhar na área literária, um
dia, quem sabe? – no momento a minha energia está direcionada para a tradução
em outras áreas.
A leitura de obras diversas
amplifica os horizontes do leitor. E o tradutor, antes de mais nada, também é
um leitor. No meu ponto de vista, o profissional da palavra tem muito a ganhar
quando deixa de lado a visão dogmática sobre o processo tradutório, ou seja, a
partir do momento em que somos seres humanos e que a tradução é feita por seres
humanos – ainda que a tradução automática esteja cada vez mais em voga –, o
trabalho poderá ser aperfeiçoado continuamente. Aliás, quem aperfeiçoa as
traduções automáticas são… seres humanos! Assim, em seu horizonte, sempre
haverá espaço para o tradutor reformular uma frase, adotar um termo mais
adequado ou ainda aceitar um feedback do cliente sobre um
trabalho entregue. O profissional da palavra trabalha motivado pela ideia de
que sempre oferecerá um produto com qualidade excepcional. Por outro lado,
quando o tradutor trabalha para agências de tradução, há outros pares envolvidos
ao longo de todo o processo, e eles devem ter a sua importância reconhecida a
partir do momento em que cada pessoa contribui nas mais diversas etapas da
tradução. Então, o cliente final receberá um produto primoroso. Levar tudo isso
em consideração é levar em conta a importância do leitor e leitora que
comprarão o seu produto ou contratarão o seu serviço por meio de um texto que
faça jus à qualidade do que é oferecido. Neste sentido, quando digo que o
trabalho de tradução tem o seu valor e ele precisa ser reconhecido e remunerado
justamente, também estou considerando, além do profissional da palavra, as
próprias agências de tradução. Ainda que o trabalho de tradução seja solitário,
a entrega de nosso trabalho está inserida no contexto de uma equipe. O trabalho
de tradução, assim, não é feito apenas à duas mãos. Aliás, faz sentido falar em
trabalho solitário quando estamos traduzindo?
Quando um produto ou serviço
é oferecido para o consumidor brasileiro, eles deverão ser divulgados para essa
audiência. Neste sentido, os textos de marketing têm essa
função. Entretanto, a tradução caracteriza-se pela sua diversidade em termos de
áreas de especialização, e além da área de marketing, há outras
áreas para as quais um texto pode receber tratamento linguístico. Em outras
publicações em nosso blog fiz alguns comentários sobre isso. Para a área de TI
ou outras áreas técnicas, é muito comum os produtos eletrônicos serem
oferecidos com os seus respectivos manuais de instruções. Durante a tradução
desses materiais, também é comum recebermos do gerente de projetos os materiais
de referência, entre os quais o guia de estilo. Em linhas gerais, esse documento
tem uma importância central durante o processo tradutório. No guia de estilo, o
documento indica em detalhes todos os parâmetros técnicos que deverão ser
levados em consideração pelo tradutor durante o trabalho. Por exemplo, o guia
de estilo indica o tom a ser usado (formal, informal, amigável ou técnico), os
termos que não serão traduzidos, limite de caracteres, regras para lidar com
abreviações e acrônimos, localização de nomes, endereços, formato telefônico,
número, datas, horário e moeda, além de outras orientações estilísticas.
E quando falamos em estilo,
além do cuidado com as palavras, também é extremamente oportuno para o tradutor
ter referências sólidas que possam fundamentar o seu trabalho coerentemente.
Afinal de contas, quando se trata de estilo, estamos falando das qualidades
presentes no texto traduzido. Neste sentido, além de saber usar bem as
palavras, o tradutor também precisa levar em conta as qualidades estéticas de
um texto por assim dizer. Assim, não posso deixar de me recordar de um dos
generosos ensinamentos de David Hume (1711 – 1776), le bon David. Em
seu ensaio Da simplicidade e do refinamento da escrita, o pensador
afirma:
como a maneira
simples de escrever é a mais envolvente e bela, pode-se seguramente dar
preferência ao extremo da simplicidade sobre o extremo do requinte[1].
Hume entende que um texto bem redigido é capaz de conquistar a atenção do leitor e haverá beleza no texto a partir do momento em que as palavras forem empregadas com simplicidade. Segundo o filósofo escocês, tudo que provém da simplicidade possui a capacidade de suscitar no leitor as impressões mais agradáveis. Tudo isso tornar-se-á perceptível de acordo com o bom uso das palavras, o emprego adequado da terminologia, o fluxo das ideias exprimidas ao longo do texto, a articulação das frases, o encadeamento dos parágrafos e etc. Entretanto, simplicidade não tem nada a ver com a falta de riqueza de detalhes ou mesmo nuances de complexidade. As ideias, por exemplo, podem ser exprimidas por meio de uma terminologia simples, mas não menos rica em detalhes. Posso visitar a cidade de Paris, e depois, em outras circunstâncias, redigir uma mensagem a um amigo descrevendo toda a riqueza de detalhes daquela cidade. Será possível falar de lugares memoráveis, dos cafés parisienses, da qualidade da comida, de todo o ambiente, dos monumentos, das figuras ilustres, etc. Neste sentido, a partir do momento em que todas as qualidades literárias são exprimidas por meio de um relato simples, a ideia de extremo da simplicidade vem à tona. O extremo da simplicidade, segundo Hume, tem a ver com o extremo grau de qualidade que as palavras são capazes de exprimir. Assim, a gradação varia da menos simples até o extremo da simplicidade. Ou seja, tendo em vista toda a diversidade de palavras presente no idioma da língua materna, em outras palavras, em toda a matéria-prima de trabalho, cabe ao profissional da palavra saber articular o que chamo de gradação da simplicidade para obter o resultado estilisticamente esperado em um texto. Um texto simples é um texto evolvente e belo, e um texto com o extremo da simplicidade é um texto envolvente e belo na gradação extrema.
Assim, penso que o cuidado
com as palavras durante a tradução demanda por parte do tradutor certas
habilidades linguísticas. Num primeiro momento, quando estamos traduzindo,
vivenciamos dificuldades para encontrar a solução tradutória mais adequada para
um termo. Eis o começo da aventura mencionada em A relação do tradutor e seus
pares. Neste momento,
o pensamento desencadeia todo o seu aparato investigativo para procurar a
melhor solução tradutória. Por outro lado, a partir do momento que consideramos
que as palavras não possuem um suposto significado intrínseco, o profissional
da palavra é capaz de fazer o bom uso das palavras para que seja possível
construir o sentido nas orações do texto de chegada. E conforme a redação do
texto é feita, as gradações de simplicidade seriam capazes de conferir estilo
ao texto traduzido. Portanto, munido com esses recursos, a abordagem do texto
de origem poderá ser feita de acordo com todo o cuidado tradutório que as
palavras merecem e no texto de chegada teremos um resultado excepcional. Conte
comigo, caso necessite de meus serviços linguísticos.
Muito obrigado pela atenção e
espero que você tenha apreciado a leitura. Até a próxima publicação!
Referências:
[1] Hume, D. “Da simplicidade
e do refinamento da escrita”. In: Ensaios morais, políticos e
literários. Introdução à edição brasileira de Renato Lessa, editado
por e com prefácio de Eugene F. Muller, Tradução de Luciano Trigo. Rio de
Janeiro: Topbooks, Liberty Fund, 2004.
Sobre a pintura:
Vincent van Gogh (1853-1890)
O semeador
Cerca de 1888
Museu Kröller-Müller, Holanda
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